Crítica | Glitch Princess


★★★☆☆
3/5

Ao mesmo tempo em que a tecnologia expandiu os conceitos de comunicação e das possibilidades científicas da criação humana, ela também ampliou as diversas abordagens artísticas sobre o quão suscetíveis estamos a falhas, imperfeições e defeitos decorrentes da vida. No cinema, os filmes de ficção científica foram os grandes pioneiros na representação de como a tecnologia pode ser uma aliada, ou uma inimiga dos preceitos individuais do homem. Em grande parte dessas obras, as figuras robóticas ou distantes dos seres humanos, acabam desempenhando um papel contraposto ao nosso: eles raramente demonstram sentimentos e emoções. Diante disso, em seu novo álbum, Glitch Princess, Yeule parte de uma abordagem incisiva em relação à tecnologia e as emoções de uma figura que transita entre dois mundos: o real, demonstrado através das emoções da artista, e o irreal, que surge entre arranjos e melodias sintéticas desenvolvidos pela experimentação tecnológica com base no glitch pop.


Diferente de quase tudo que já vimos sobre isso nas telonas, na música, foram poucas às vezes em que contemplamos a narrativa de uma figura não-humana ser representada conforme a sua vivência. Janelle Monáe, por exemplo, é um dos principais nomes a tornar essa perspectiva real, principalmente quando dedicou as suas obras para relatar a vida de Cindi Mayweather, uma androide revolucionária. Não muito distante de Janelle, Yeule também resolveu parar e contar a história de uma figura que transborda sentimentos e emoções, mesmo que as características determinantes dela não sejam as mesmas que a de uma pessoa.

Como uma ciborgue, ela usa de suas experiências pessoais para criar narrativas conflitantes, indo do amor ao ódio muito rapidamente. Ao fugir da realidade e encontrar conforto em lugares improváveis da internet, somos guiados rumo a um turbilhão de sensações. Tudo feito, ou melhor, tudo programado a partir de computadores e sintetizadores encarregados de criar sons e texturas contrastantes, como é descrito na faixa “My Name Is Nat Cmiel”, que abre o disco. Na sequência, “Electric” revela-se o ponto alto de toda obra. Com vocais distorcidos ao extremo e uma letra lindamente tocante, a canção entrega um arquétipo que todas as outras canções irão seguir nesse sentido. Mas nessa, em especial, é onde notamos o tamanho sentimentalismo e poder da tecnologia em criar arranjos surpreendentes e uma força intangível quanto ao que é esperado de uma música sobre o poder do toque.

Embora mantenha uma pegada experimental o tempo todo, em Glitch Princess, ainda podemos sentir o apego acessível da artista em relação ao pop. Faixas como “Don’t Be So Hard on Your Own Beauty” e “Bites on My Neck” trazem essa perspectiva conforme nenhuma outra. E mesmo que as canções mais convencionais — dentro da abordagem do álbum — sejam grandes destaques, as experimentações de Yeule com o seu braço direito Danny L Harle, ainda assim se mostram com maior importância. Como é de se esperar vindo de uma obra firmada no glitch pop, a atmosfera ambient preenche todos os espaços possíveis, seja em canções como “Flowers are Dead” e “Eyes”, ou na colossal “The Things They Did for Me Out of Love”, faixa bônus e que conta com mais de quatro horas e meia de duração, em que diferentes texturas e vocais se misturam dando rumo a uma experiência com várias nuances, mesmo que não seja uma obrigatoriedade no contexto da obra.

“Too Dead Inside”, por sua vez, acaba espelhando um lado inseguro e inibido da artista. Nessa faixa, os sentimentos conflitantes surgem como uma crise existencial, algo que pode ser notado no verso: “I can’t stop relying on / The darkness of my own demons unholy / Memories, the curse of teeth / That bites into my flesh”. Em outros momentos, não são as palavras que expressam os sentimentos, mas sim, o som desencadeado de codificações inteligentes, conforme é o caso das amarrações eletrônicas em “Fragments”, “I <3 U” e “Friendly Machine”.

Expandindo os horizontes criativos de sua carreira, Yeule tenta e consegue muito bem se firmar em uma proposta diferente. Embora o glitch pop tenha tido alguns nomes bastante importantes, ela se estabelece como um ponto fora da curva e se mostra tão genial quanto podemos imaginar. Por fim, Glitch Princess tem tudo para se tornar um clássico dos adoradores da estranheza e do experimentalismo em sua fórmula mais intrínseca e verdadeira o possível.

Selo: Bayonet
Formato: LP
Gênero: Experimental
Matheus José

Graduando em Letras, 23 anos. No Aquele Tuim, faço parte das curadorias de Jazz, Música Independente, Eletrônica e Experimental.

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