★★★★★
5/5
"Unir o erudito ao popular", essa era a visão de Arrigo Barnabé quando estava compondo as músicas do disco Clara Crocodilo, de 1980. Na verdade, seu desejo sempre foi esse; sua formação em música clássica, sua compreensão da música moderna e seu grande apreço pela música popular brasileira não deixava essas coisas se desentrelaçar.
Por mais que pareça comum para o Brasil a união da música erudita à música popular, pois temos grandes exemplos de artistas que já o faziam (Villa-Lobos, Chiquinha Gonzaga), no caso de Arrigo, isso tudo denota uma questão diferente: o modernismo. Nesse caso, não é apenas o modernismo na música, Arrigo é um grande apreciador das artes do mundo moderno: o cinema e, principalmente, os quadrinhos.
E é com essas influências e com essa vontade de incorporar todas essas formas de expressão que Clara Crocodilo vai tomando forma, com uma estrutura muito peculiar para a música popular brasileira da época: a estrutura de narrativas diretas. São diretas, pois quase toda música popular busca uma narrativa, algumas das grandes referências de Arrigo Barnabé para a música popular foram os músicos da Tropicália, que ainda tinham uma preocupação com o lirismo e a busca pela psicodelia através dele. Já em Clara Crocodilo, o lirismo é muito direto, tudo que acontece é relatado, como alguém te contando uma história, como ler as páginas de um gibi, buscando a psicodelia por meio da estrutura atonal de música
Músicas atonais são músicas que não possuem tonalidade, que não possuem tema, que não se restringem às harmonias clássicas e que não estão preocupadas em propor uma estrutura musical. Obviamente, isso faz com que a primeira audição do disco seja totalmente esquisita, ainda mais se pensarmos que esse acompanhamento musical, totalmente fora do padrão, está fazendo par com letras tão diretas.
É por isso que é um pé na porta tão chocante escutar a faixa de abertura "Acapulco Drive-In" pela primeira vez. A letra, de fácil compreensão, conta a história de um "coroa" que está flertando com garotas na rua e as convida para um drink num Drive-In. Porém, em meio a tudo isso, é possível escutar todos os barulhos de ambientação (buzinas, sussurros, uma voz que parece a de um narrador caricato de filme apresentando o personagem…), e o instrumental atonal não apenas te coloca nesse universo, mas te tira da sua zona de conforto musical. É uma psicodelia suja, como se estivesse errada, não fosse para se escutar. A história termina com uma "brincadeira" no carro, com direito a calcinha de 'pele de leoparda'.
Contudo, se todas as músicas desse álbum fossem assim, seria possível dizer que Arrigo falhou em unir a música popular com a música erudita. Músicas populares têm refrões, elas possuem segmentos memoráveis e de fácil repetição; partes familiares e agradáveis para todas as pessoas. Mas é a partir da segunda faixa que ele nos apresenta tudo isso, de uma forma muito inovadora. Puxando o gancho sexual da canção anterior, "Orgasmo Total" possui o coro: "Até chegamos ao orgasmo total/ Orgasmo total", que é adornada por um instrumental modernista a ponto de ser impossível não lembrar das vozes de Suzana Salles e Vânia Bastos, conhecidas aqui como a "Banda Sabor de Veneno".
A partir daí, as músicas seguem essa lógica-sem-lógica, de coisas memoráveis e repetidas, mas com um instrumental atonal. Vale o destaque para duas obras-primas do disco: "Diversões Eletrônicas" e "Sabor de Veneno". A primeira, por ser uma aula de narrativa e ambientação musical, os delírios, as interpretações, o barulho dos telefones, os lugares, as texturas… tudo é apresentado, tudo está ali, além da voz inigualável de Tetê Espíndola. Só ouvindo para conseguir entender toda a experiência, provavelmente o magnum opus da música popular brasileira, de todos os tempos. Já em relação a "Sabor de Veneno", trata-se de uma música completamente viciante, ou melhor, intoxicante, certamente a música mais "hit" de todo o disco. O grande destaque é a "Banda Sabor de Veneno" soltando toda a sua voz nessa canção fantástica.
Porém, para mim, é impossível não comentar a faixa "Clara Crocodilo", a música final do disco, em que tudo o que foi feito nas músicas anteriores se entrelaça. A música anterior "Office-Boy" termina com um trabalhador de escritório sendo transformado em um monstro, "o perigoso marginal, o delinquente, o facínora, o inimigo público número um: "Clara Crocodilo". E é assim que a música que dá nome ao disco começa, conversando com o ouvinte diretamente, como se, ao ouvirmos esse álbum, estivéssemos em contato com algo sobrenatural.
E a partir daí todos os elementos das outras músicas voltam: o humor, a atonalidade, as repetições viciosas e viciantes, os gibis, a narrativa, alegorias políticas, entre tantas outras coisas. Porém o mais importante, Arrigo Barnabé nunca deixa de lado a estranheza do disco; o sincretismo entre o erudito e o popular, por si só, é algo assustador. Portanto, se o início alude a ter algo tão poderoso e assustador neste disco, é o que ele traz novamente nas últimas palavras da última música, que são simples, mas ao mesmo tempo fazem um aceno ao poema de Baudelaire em sua última frase. E é com essas palavras que Arrigo se despede de sua primeira jornada, e que eu também encerro o texto:
"Onde andará Clara Crocodilo? Onde andará? / Será que ela está roubando algum supermercado? / Será que ela está assaltando algum banco? / Será que ela está atrás da porta de seu quarto, aguardando o momento oportuno para assassiná-lo com os seus entes queridos? / Ou será que ela está adormecida em sua mente, esperando a ocasião propícia para despertar e descer até seu coração… ouvinte meu, meu irmão?"
Selo: Independente
Formato: LP
Gênero: Música Brasileira / Vanguarda Paulista, MPB