Clássicos do Aquele Tuim | Vaudeville Villain (2003)


★★★★★
5/5

No período de 1998 a 2003, um grande fenômeno se tornava cada vez mais indubitável: o rap estava mudando, e num ritmo imparável. Nessa época, Outkast já demonstrava inquietação com a estabilidade do gênero, mesmo que caminhando nas mesmas trilhas já asfaltadas por seus antecessores. Deltron 3030 invertia o tabuleiro do hip hop experimental, orgulhosamente hasteando a bandeira do abstracionismo lado a lado com El-P e Aesop Rock. Nujabes, no Japão, ditava as bases para o surgimento do hip hop lo-fi quase uma década antes de sua consolidação. Kanye estava prestes a se tornar a nova sensação americana, mudando para sempre o conteúdo lírico e a forma de interpretar a arte do rap. T.I. lançava Trap Musik e, consequentemente, o gênero mais predominante da década, o inescapável trap, alteraria o cenário mundial da música como um todo. Mais e mais exemplos e eventos poderiam ser citados, afinal, a lista de novidades no rap nesse período é bem longa.

Entretanto, o já lendário MF DOOM não queria somente experimentar com influências novas e criar algo único para que o rap ultrapassasse épicas barreiras, não, ele além de tudo se preocupava com o futuro do próprio boom bap. Do que seria a arte do rap “clássico” com todos esses novos movimentos surgindo, será que cairia no esquecimento? Era preciso se preocupar com isso? O que ele poderia fazer? Bem, quase nenhum gênero morre, isso é certo. Por mais obscuro e antigo que o gênero musical seja, ele (provavelmente) continuará vivo, não importa o que aconteça e em quais contextos, mesmo que numa maca suja respirando por equipamentos obsoletos, ou em uma forma reinventada em um hospital de algumas dezenas de andares. A intenção de DOOM era que o boom bap, ao invés de ter uma vida destinada à miséria, continuasse tão em movimento e refrescante quanto na sua era de ouro dos anos 90. A partir disso, uma de suas obras mais ignoradas  e, argumentavelmente, a que mais contribuiu à cultura do hip hop  surge: Vaudeville Villain.

O álbum previu as mudanças no boom bap em sua nova ascensão na década de 2010 por meio da implementação de novos elementos que estavam borbulhando aos arredores das esferas do rap. Os samples continuaram, os ritmos da bateria continuaram, mas tudo isso é ligeiramente alterado por uma série de adições ao ponto de chegar num momento em que beira o experimentalismo. Contudo, quando se analisa faixa por faixa, a esmagadora maioria possui as mesmas bases estabelecidas pelo boom bap há anos, apenas cuidadosamente e elegantemente levadas ao limite. É uma espécie de manifesto escrito nas entrelinhas, afirmando que um gênero precisa se reinventar para continuar sendo relevante, mas não abandonando sua gênese a fim de uma criação completamente inédita.

Os elementos eletrônicos do glitch hop (outra previsão, dessa vez do wonky e de Injury Reserve), são os que mais chamam a atenção nesse disco, sendo que essa mesma influência persiste até os dias de hoje na produção de rappers famosos, como Roc Marciano — que iniciou a nova fase do boom bap em 2010 — e na de todos os membros do coletivo Griselda. O som lúgubre do álbum também foi herdado por essa estética reinventada do gênero, assim como a preferência por texturas únicas que destacam a faixa como um produto único no espaço-tempo do hip hop; uma técnica que o grande produtor The Alchemist notavelmente utiliza em suas obras. No entanto, não é apenas a sua importância como marco da reinvenção no underground e a sua posição como parte da discografia de um dos rappers mais consagrados de todos os tempos que torna esse projeto um clássico. Ele é genuinamente fabuloso como uma obra isolada também.

Sob o pseudônimo de Viktor Vaughn, DOOM anda quilômetros além de apenas uma estética inovadora e um estilo anos-luz da produção da época, na verdade, esse álbum brilha em absolutamente qualquer aspecto imaginável. A lírica abstrata do rapper aqui está potencializada, triunfante e quase em seu máximo de qualidade, encaixando double entendres nos versos mais improváveis de se conceber e planejando esquemas de rima que faz até o careca se descabelar. Assim, por mais que não chegue ao ápice inalcançável de Madvillainy, é no mínimo injusto comparar ambos álbuns, pois suas propostas são inconfundivelmente distintas.

O conceito deste álbum é muito sutil — assim como qualquer obra de Dumile —, mas isso não significa que ele não é primoroso de uma ponta à outra. É o conceito ideal para abordar sobre o passado, presente e futuro do rap, de forma que a atitude agressiva e flows ágeis do artista criam uma construção de mundo impecável, que somada à produção distópica e sombria, forma como produto uma imersão sem igual. Desde as viagens no tempo, às noites de batalha de rima, à perspectiva de um artista mais jovem e ao conteúdo metalinguístico sobre o hip hop como arte, a perspicácia de DOOM como artista completo fica evidente com a união de todos esses temas, sem medo de inovar ou não.

Esse disco se destaca tanto como um fantástico estudo sobre o próprio hip hop quanto por ter uma execução minuciosamente imaculada, em que o artista seleciona e ajuda a produzir os beats que melhor cabem naquele capítulo da narrativa, os põe numa ordem de fluidez exímia e, baseado nisso, escreve a sua melhor história em sua mais glamorosa e instigante persona. Não se pode pedir nada mais nesse álbum, sua proposta é ousada, influente até hoje e atemporal, sendo que nenhum projeto vai conseguir captar uma energia tão vibrante, obscura e cheia de significado no exato momento em que o rap precisava de algo tão grandioso e, ao mesmo, tempo pé no chão. Vaudeville Villain é um álbum impecável. Inacreditavelmente único, surpreendentemente maravilhoso e envolvente desde seu primeiro ao último segundo. É uma obra essencial do hip hop como arte conceitual e, principalmente, como arte em movimento. No final, não é à toa que é considerado um clássico.

Selo: Sound-Ink
Formato: LP
Gênero: Hip Hop / Abstrato, Boom Bap, Experimental
Sophi

Estudante, 18 anos. Encontrou no Aquele Tuim uma casa para publicar suas resenhas, especiais e críticas sobre as mais variadas formas de música. Faz parte das curadorias de Experimental, Eletrônica, Rap e Hip Hop.

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