Crítica | A Great Chaos


★★★☆☆
3/5

No natal de 2020, papai noel deu ao mundo um presente cujo ninguém estava preparado: Whole Lotta Red, de Playboi Carti, um projeto que ressurgiu a figura rockstar das cinzas, atraindo olhares por sua bestialidade e atitude fora da curva no sentido mais bizarro e prazeroso possível. Dividiu opiniões por seu caráter excêntrico, mas após alguns anos o consenso do álbum como projeto baseado em pioneirismo e originalidade tornou-se dominante.

Desde então, quase três anos se passaram, mas não foram quaisquer simples e passageiros anos, e sim os três mais morosos, inacabáveis, ensurdecedores e entediantes possíveis. Era gritante: a música rage estava em decadência a partir do momento em que começou a existir. Nada além de beats formulaicos feitos por máquinas humanas e performances sonolentas feitas por rappers robôs estava em produção — pelo menos não até esse álbum. A Great Chaos empurra os conceitos do trap até a ponta de um penhasco, cria pequenas rachaduras no chão e então posiciona dezenas de pesos em cima delas, mas ainda assim não deixa a fundação ímpar desses conceitos desmoronar.

Alguns sintetizadores das produções presentes aqui são programados de tal forma que qualquer brecha rítmica é preenchida com alento em uma espécie de experiência seca e psicodélica, ora em aceleração máxima, ora em embriaguez extrema. Existem, ainda, sessões do álbum que o baixo se encontra tão explosivo e vibrante que é possível senti-lo ritualisticamente perfurar a alma através dos ouvidos. Por fim, outras músicas têm uma mixagem tão distorcida e crocante que as dinâmicas se transformam num grande fuzuê de mistura entre sons reconhecíveis e puro barulho. Contudo, ainda existem outros momentos que são mais tranquilos, apostando em uma energia agradavelmente intensa e assim permitindo que a extravagância de Ken como rapper brilhe como lua cheia.

Igualmente a produção, Carson não é um rapper ortodoxo, na verdade, suas características são tão anormais ao gênero que o que mais se vê são críticas ao seu estilo. Seus flows são relativamente difíceis de se detectar e sua cadência pode soar ou muito quebradiça ou muito uniforme; sua voz pode soar como inglês ininteligível ou como se fosse um cavalheiro entupido de autotune; sua lírica, sem rodeios, é completamente irrisória, às vezes do tipo de se admirar e em outras de se questionar, mas sempre estufada com personalidade.

Esses atributos conflituosos e bagunçados na verdade comprovam sua ligeira versatilidade como rapper, que combinada com o produto descontrolado de produtores inspirados e criativos — mas sempre se limitando à paleta restrita do gênero — transforma o que seria apenas mais um álbum de rage na segunda bandeira fincada de experimentação e agressividade do estilo… pela maior parte.

Sim, Ken tem uma performance interessante em várias das músicas e os beats são por vezes alucinantes por vezes matadores, mas, lamentavelmente, o disco se perde muito em músicas que não fogem ao padrão, perdendo toda a essência que faz dele algo tão gigante para a indústria no momento. É ilógico ter momentos de avanço expressivo tanto qualitativamente quanto experimentalmente em algumas faixas e em outras — aliás, graças a Deus, sem nenhuma coerência entre elas — dar piruetas e cambalhotas pelas mesmas retrógradas ideias tão emocionantes quanto beber água quente. Pelo menos, por ser um especialista no gênero, nenhuma dessas voltas em passeatas vazias soa mal, apenas decepciona.

Dito isso, certamente o que mais espanta em A Great Chaos não é nem sua faceta experimental ou brincalhona, e sim o abismo imensurável de qualidade quando comparado com X, LP de Carson do ano passado. Os flows inexistentes amadureceram em flows concretos — embora notavelmente titubeantes — e a vocalização sem alma deu lugar a performances acertadamente ponderadas ou apaixonadas quando necessário. O que mais surpreende dessa vez é a produção, que se transformou em um grande exemplo de ideias divertidas e à frente do comum que foram construídas em alicerces sólidos, não baseadas em um gigantesco e inútil nada como em seu disco anterior.

Sem dúvidas, o álbum é uma demonstração exímia de como crescer artisticamente e adaptar suas características em algo inovador, empolgante e relevante, enfeitiçando a todos com um projeto divertido e único, além de pra lá de interessante.

Selo: Opium
Formato: LP
Gênero: Hip Hop / Rage
Sophi

Sophia, 18 anos, estudante e redatora no Aquele Tuim, em que faço parte das curadorias de Rap e Hip Hop e Experimental/Eletrônica e Funk.

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