Clássicos do Aquele Tuim | Blonde (2016)



★★★★★
5/5

Frank Ocean, mais vulnerável do que nunca, coleciona peças de um jarro quebrado, como se quisesse consertá-lo, mas, de alguma forma, não obtivesse sucesso. Blonde surgiu dessa ruptura do artista com muitas de suas narrativas, assim como é também uma ruptura importante na música ao longo da década de 2010. Um trabalho independente, que projeta um lirismo único e que foi vendido como água. Quais as chances?

Para compreender Blonde não é preciso ir muito além do que acontecia em meados da década de 2010, não por razões de limitações temporais, mas sim por uma questão profundamente situacional cujo trabalho corresponde como nenhum outro. A vitória de Donald Trump e um novo fragmento de brutalidade policial — que parece ir e vir graças à manutenção sistemática das instituições e seus modelos militaristas fincados na tirania da bela e maravilhosa realidade do capitalismo americano — inaugurou um novo período de uma espécie de reacionismo liberal ajustado ao alcance até então pouco visto das redes sociais, que não pouparam esforços em destacar os piores cenários possíveis para diferentes minorias (algo muito semelhante ao que aconteceria aqui no Brasil mais tarde). E isso foi o suficiente para que o desenvolvimento multicelular de um momento nas artes, na política e na sociedade como um todo fosse despertado.

Após isso, com base nesse contexto, alguns cistos aparecem no tecido corporal dos Estados Unidos. Foi o momento perfeito para questionar. E muito se fez nessa direção. Mas diferentemente da maioria, Frank Ocean não estava interessado em ser literal, em expor veementemente algumas de suas observações a respeito do suposto obscurantismo ali presente. E graças a isso – ainda bem – Blonde não é um álbum político, de protesto. É, acima de tudo, uma obra que se assenta no reflexo, no caso, o reflexo de uma geração representada sob a ótica de um artista que, mais do que nunca, tinha perdido o gosto pela forma como a arte, a música, se dava pelos meios – sendo um dos sinais claros de sua oposição à mídia a irritação com o Grammy – agora preocupados em expor absurdos, em outras palavras, dar volume aos métodos de ocupação da direita.

O discurso de evitar que o horror se espalhasse e afetasse as gerações futuras fez com que aquela geração ficasse desamparada, obrigando a memória a ganhar autonomia, por isso Frank recorre a gravações de áudio, como sua mãe em “Be Yourself” pedindo-lhe para não usar drogas ou consumir álcool, e pessoas próximas dele ao longo de “Futura Free”. De outra forma, a memória é mais dolorosa: na abertura “Nikes”, ele menciona Trayvon Martin, um adolescente negro assassinado na Flórida durante a já mencionada onda devastadora de brutalidade policial. Mas não bastava apenas resgatar a memória como é feito no trecho “R.I.P. Trayvon, that ni**a look just like me”, Frank vai além e destaca o prazer, às vezes inapropriado para camuflar a realidade que desaparece entre esse desejo material por peças de roupa, sintomático do sonho de superação da pobreza que muitos jovens são encorajados a ter pelo próprio capitalismo incorporado na moda e seu valor que é usado, não apenas hoje, como distinção de classe.

E, apesar de “Pink + White”, com os vocais de Beyoncé e toda sua atmosfera agradável, que instiga a imersão, e “Nights”, cuja vez representa uma extensão da catarse de Frank pela psicodelia, já presente e representada por “Pyramids”, de 2012, serem os grandes carros-chefe, Blonde se destaca justamente pela não manutenção daquilo já feito por ele. E se os temas mencionados até agora não convenceram você a vê-lo de uma perspectiva íntima, são suas expressões sobre o amor é que podem. Em “Ivy”, em uma de suas declarações mais brilhantes, ele canta sobre o início da paixão: “I thought that I was dreaming when you said you love me”. Mas, o rompimento desse amor também é um indício de sua existência, por isso ele prossegue: “I could hate you now / It’s quite alright to hate me now / When we both know that deep down / The feeling still deep down is good”.

Nota-se, em momentos como este, o amplo apoio a uma nova estética, como se Frank dispensasse os grandes dispositivos motores que criavam camadas em Channel Orange. A intimidade também é sonora, como se tudo fosse criado em uma câmara vazia, apenas com o artista, seu instrumento base e sua música — distorções vocais, riffs longos e melodias de música ambiente dão lugar ao sentido principal em que o som é replicado.

Frank Ocean sabe que além de sua narrativa contada em faixas que exploram diferentes camadas de sua sonoridade, é preciso impor mistério quanto ao seu próprio significado. É por isso que o seu desaparecimento justifica a sua presença; ele aparece nos contando suas impressões do momento e, em seguida, desaparece. Ele está desaparecido hoje, assim como estava antes de lançar este álbum. A questão sobre o que ele nos poderá apresentar não será nova, mas atormenta mais do que gera curiosidade. Frank Ocean é mais do que um contador de histórias. Por esse motivo que a sua intenção de montar peça por peça da jarra quebrada não surte efeito: sua presença momentânea é irreplicável, tão distinta quanto as águas de um rio que corre sem olhar para trás. Se em 2016 ele apareceu acompanhado de todos os seus signos para representar o momento que vivia diante de todos os cenários caóticos causados pelos motivos acima mencionados, resta repetir a dose, ou, como um artista tímido e inquieto, propor algo inédito depois de um novo caos — desta vez global — que foi a pandemia de COVID-19.

A exposição da memória presente em Blonde edifica o seu relato. É assim que nascem os clássicos. É desta forma que Frank Ocean estabeleceu a sua personalidade artística máxima, aliada a uma excelência lírica e musical que chama a atenção pelo seu tom intemporal. Blonde se materializa na representação de uma geração que passou pelo esquecimento, pela violência e agora, como tantas outras, busca entender o passado para caminhar em direção ao futuro, e não há nada mais que represente este álbum do que esse sentimento de caminhar em direção o passado – seja por nostalgia – enquanto esperamos arduamente pelo futuro que certamente nos espera com mais brutalidade policial, mais fascismo e mais necessidade de recordação.

Selo: Boys Don't Cry, XL
Formato: LP
Gênero: R&B / Alternativo
Matheus José

Graduando em Letras, 23 anos. É editor sênior do Aquele Tuim, em que integra as curadorias de Funk, Jazz, Música Independente, Eletrônica e Experimental.

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