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5/5
No ano passado, em meados de maio, Kali Malone foi impedida de realizar um de seus concertos na cidade de Carnac, na França. O incidente chamou a atenção, pois o motivo do cancelamento se deveu a um grupo integralista católico chamado Civitas, ter ocupado a igreja onde Malone iria se apresentar sob a justificativa de que a artista, que reproduz suas composições em órgãos, havia profanado ao lançar em seu álbum The Sacrificial Code, de 2019, uma música chamada “Sacer Profanare”, cujo título significa “profanar o sagrado” em latim.
Claro que este fato, por si só, representa em parte a dificuldade em conciliar o trabalho artístico de Malone com o meio utilizado para fazê-lo. A beleza que ela desempenha na música é tão extraordinariamente rara que a sua atuação é adornada com cenários por vezes distintos à razão humana depositada em emoções derivadas da crença, a fé. Embora use destas para efetivar-se como encenação artística. No início do ano, ainda em 2023, Kali Malone tinha lançado Does Spring Hide Its Joy, obra que apresentava diferentes versões de uma única composição, com duração de cerca de três horas. O álbum, focado em reproduzir as variações mínimas sobre as quais se constrói a arte da compositora, funciona como uma apresentação de seu novo trabalho, All Life Long.
Desta vez, a sua incursão entre o mundo da religiosidade e da profanação é a semente da qual germinam as suas longas e densas peças, abrangendo as noções mais importantes que ela defende. Na faixa que abre o álbum, “Passage Through The Spheres”, nos deparamos com uma quase interpretação de Malone — postada aqui como parte da criação do disco — extraída do ensaio In Praise of Profanation, de Giorgio Agamben, que é cantado pelo coro Macadam Ensemble. Segundo o filósofo mencionado, a profanação também é a retirada do que foi definido como unicamente sagrado, muitas vezes distante dos fiéis, tornando acessível e secular tudo aquilo que de alguma forma encontra aproveitamento pelas pessoas. É uma mensagem ao incidente citado no início, em que a artista intervém com a sua própria posição patrística com a intenção de contrariar, porque não, a deturpação que lhe foi inferida pela extrema-direita naquela situação.
Esta abordagem, tão verdadeiramente reveladora, é parte essencial da combustão de ideias abordadas em All Life Long com as suas peças-chave: órgão de tubos, coro e quinteto de metais. Embora longe de uma unificação plana, estes elementos aparecem e desaparecem com a maior sutileza possível, como se tivessem sido concebidos para corresponder apenas nos seus momentos de contemplação. Nessa perspectiva, nos sentimos parte da expedição proposta por Malone nas suas camadas mais íntimas. É como se os momentos de intrusão humana fossem a luz responsável por guiar a energia espectral que toma conta de momentos como “Fastened Maze” e “The Unification of Inner & Outer Life”, que encerra o disco pendendo pelas laterais de uma estrutura que pode soar, para muitos, bastante familiar dadas as grandes experimentações meditativas nos trabalhos anteriores da artista.
All Life Long, nesse sentido, é a sinalização do ponto de encontro de tudo o que já foi feito por Kali Malone até então. Isso pode ser percebido pelo fato de conter suas primeiras composições para órgão desde 2019; por ambientar suas execuções eletrônicas outrora vistas em Living Torch, de 2022. E, também, por instigar a reflexão sobre a presença de Malone nas igrejas, tornando viva a arte que dali se escorre para o mundo. Este álbum é uma obra que desperta diferentes sentidos, que nos coloca numa caixa vazia e nos empurra para ver a música e a vida de forma diferente, com a calma de que somos pequeninos e que só encontramos força na expansão do próprio tempo — não é à toa que aqui se encontra um processo de produção/composição que durou de 2020 a 2023. Tempo que não foi desperdiçado nem um pouco na perspectiva de uma das artistas mais interessantes da atualidade.
Selo: Ideologic Organ
Formato: LP
Gênero: Experimental / Drone, Modern Classical