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O Brasil sempre manteve uma relação próxima, e bastante íntima, entre a sua música e o seu público. Enquanto outros países emularam estilos americanos e britânicos do pop, do jazz e do rock de forma que era impossível desconectar a americanização do americanizado — ou seja, são estilos que vivem à sombra de uma cultura distinta, pouco únicos —, o Brasil conseguiu escapar, excepcionalmente, desses reflexos. Embora a MPB seja notavelmente influenciada pelo movimento psicodélico de bandas como Os Beatles — um exemplo óbvio sendo o Lô Borges, que morria de paixão pelos mesmos —, pelo jazz vindo da bossa nova e pelos maneirismos do rock, ela é, antes de tudo, uma manifestação inteiramente brasileira.
Isso ocorre pois, como já dito, a popularização da música brasileira ocorre por meio de um processo fortíssimo e, desde sua mercantilização de massificação industrial, que começou por volta da década de 20 e 30, ela sempre se baseou nos nossos próprios estilos e em aproveitar o amor das massas por eles. Assim, era possível, ou até bem provável, que isso fosse largado com a chegada de estilos externos, muito populares nas nações imperialistas e que, logicamente, seriam transpostos para cá, contudo, não foi o caso — pelo contrário, as raízes brasileiras dentro da música popular foram intensificadas nesse momento, que alcançaram os cantos mais longínquos de nosso extenso país.
Desde a grande influência da nossa literatura aos ritmos regionais — dando destaque aos ritmos nordestinos e interioranos —, a MPB conseguiu criar uma significação própria no Brasil: nem muito americana nem regional demais, uma terceira coisa secreta, mas definitivamente brasileira. E, bem, em algum momento isso iria acabar. Fullgás, de Marina Lima, representa exatamente esse fim, mas o fez de uma forma que mantivesse, intacta, a alma conflitante da MPB.
Em um país tão densamente dentro da zona de influência estadunidense, era questão de tempo até que um “b-pop” — não confundir com o micro gênero brasileiro de emulação do k-pop — surgisse, influenciado pelas tendências do sophisti-pop e synthpop, fresquissimas e muito empolgantes para a época, evoluindo para o estilo do new wave brasileiro (Kid Abelha), então para o new romantic brasileiro (Roupa Nova) e então, finalmente, para a formação de nosso pop. Dessa forma, mesmo que não seja o primeiro disco do estilo e nem tenha vindo do principal artista do mesmo, Fullgás permanece sendo a melhor síntese e representação de ruptura do pop com a MPB.
Marina consegue tensionar liminarmente o fio do sophisti-pop para conseguir encaixar sublimemente o teor lírico e as referências musicais da MPB nele. Fortemente influenciada pelo trabalho solo da Rita Lee — que, inclusive, tinha um objetivo bem similar, embora ainda muito conectado às formas do rock tropicalista —, ela compôs uma coleção de 11 faixas repletas de refrões contagiosos e letras excelentes, chiquérrimas e curvilíneas. Nelas, encontramos hits como “Fullgás”, “Mesmo Que Seja Eu” e “Me Chama”, mas também diamantes lapidados à perfeição, como “Nosso Estilo”, “Pé Na Tábua” e “Veneno”, esta sendo pessoalmente a minha favorita.
Mas pouco importa descrever Fullgás, faixa a faixa, ditar as inúmeras razões para ser tão bom, já que sua qualidade e sua sonoridade sinuosa é amplamente conhecida, precisamente por ser um álbum pop, mas para além de influência, popularidade, e nível de composição, o álbum é também um exemplo de sentimento, sentimento puro e sincero — uma característica que vem diretamente da MPB.
Por exemplo, tomemos “Veneno” para demonstrar a significação do álbum, seu trunfo máximo. Nela, “Veneno / Não me beije que eu tenho veneno / É meu preço não faço por menos / Mas depois te amarei” é cantado por Marina com um vinagre na voz, com uma tentação de fruto proibido, vermelho, verde, sensual. É uma maneira belíssima de passar o amor, transformá-lo em fervorosa bebida alcoólica, destilada calorosamente em seus ouvidos. E, é claro, essa apaixonante sensação não poderia se concretizar se não fosse o cristalino romance do instrumental, que desliza sobre si mesmo com seus violões e sintetizadores esguios, que complementam-se de forma análoga às metades amor e tragédia, beleza e decadência, sensual e mortífero. As baterias eletrônicas atmosféricas, as pequenas melodias que ora aparecem ora saem… cada elemento conversa entre si com o propósito de sintetizar sentimento, provocar sensação, dança, pensamento. E, mesmo que seja o pico do álbum, “Veneno” não é excessivamente melhor que o resto das faixas, sendo que todas, em alguma medida, trabalham essas mesmas temáticas e intensidades do amar.
“Todos os sentidos, cada gota / D'água, nesses mares de prazer / Veneno / Cor-de-rosa, suave, sereno, moreno / Nesses seios tem todo o veneno / Que você chama de amor”. Fullgás é fenomenal tanto como obra histórica de formação do pop brasileiro quanto como uma experiência sensorial de tirar o fôlego, dentro e fora dos aspectos da MPB. E, por mais que sonoramente datado, sua poesia e sua capacidade de, em escala de um por um, transmitir antiteticamente o amor humano são, sem dúvidas, atemporais.
Selo: Polygram
Formato: LP
Gêneros: MPB / Sophisti-Pop, Synthpop