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É legal entender de música, mas quando a música paradoxalmente ultrapassa além da linha entre arte e não-arte, não basta apenas entender música, é preciso amar.
Por vezes, se olha para uma obra de arte e não se vê o contexto. A arte é indissociável de indústria: desde os tempos em que o mecenato romano fazia suas rondas pela terra, até quando Banksy rasga alguma de suas anti-artes diante de uma alcateia de ricos atônitos em um leilão, tudo emana indústria, vem da indústria e retorna à indústria. Voltemos nossos olhos, por exemplo, para a Pietà de Michelangelo:
Foto Por Stanislav Traykov (CC BY 2.5)
A genialidade talvez seja mais evidente aqui do que em qualquer outra obra de arte já feita. O apelo às massas é claro: representa a Virgem Maria e Cristo já morto em seus braços. Onde está a indústria? Michelangelo fez a Pietà sob encomenda de um Cardeal católico, que cobriu todas as despesas necessárias. É a transformação da matéria-prima em manufatura.
A música, mesmo sendo um tanto mais natural ao Ser do que a pintura e a escultura, tem suas nuances industriais ainda mais acentuadas: não à toa, volta e meia acusam esse ou aquele artista de ser um "industry plant", ou seja, alguém com fama forjada pela indústria a fim de gerar capital. É francamente impossível se dissociar completamente da indústria, afinal, o produto artístico só chega ao consumidor por meio dela.
Isso é claro, mas não impede alguns artistas de tentar. Principalmente no meio underground e experimental, existe um sentimento de rejeição à massificação da arte, um crescimento na cultura Do It Yourself, a negação do controle cultural mediante o ostracismo. A partir disso, surgem alguns gêneros de importância social, como o no-wave, o minimalismo, o lowercase, o noise, o vaporwave e o avant-garde (que não é gênero propriamente dito). Destes, nenhum causa mais estranheza inicial e leiga do que o noise. É legal entender de música, mas quando a música paradoxalmente ultrapassa além da linha entre arte e não-arte, não basta apenas entender música, é preciso amar.
Ninguém diria que, por exemplo, Roberto Carlos não é música: ele tem melodia, ritmo, timbre, harmonia. Mas é isso que define música? A soma de partes? A análise faixa por faixa para chegar ao todo e dizer se é um álbum bom? Merzbow não é música; não tem timbre, não tem melodia, tem um senso fraquíssimo de ritmo. Mas, todas essas partes são deliberadamente planejadas na música dele, assim como eu assobiar aleatoriamente seria música, mas talvez não fosse arte. Merzbow é os dois.
Refutar isso é como refutar o dadaísmo, algo reservado ao lado um tanto mais protofascista da população. Refutar o dadaísmo é brega, ultrapassado; o futurismo era kitsch, Duchamp era camp. Mas dizer o mesmo sobre harsh-noise ou power-electronics é paradoxalmente, em certa medida, coeso e inteligente. É a ideia do É contra o Não É, onde o foco não está nas características técnicas que compõem a música, mas sim no efeito que ela provoca no ouvinte.
Igor Stravinsky foi estranhamente rejeitado em sua época por uma tomada avant-garde em Sacre du Printemps e no seu período dodecafônico, mas ninguém hoje em dia negaria a genialidade de Stravinsky. A voga de dizer sobre isso ou aquilo ser ou não ser diz mais sobre moralismo e conservadorismo, ambas palavras que surpreendentemente assustam profundamente quem compartilha dessas ideias.
Ninguém quer ser moralista até ser, e ninguém entende música até entendê-la, mas e aí o que resta depois disso? Como entender algo que é feito para ser irreconhecível, mutável, estar por toda parte e de difícil audição? É aí que o moralismo tem que parar, o tacanho entendimento das partes que compõem algo tem que ficar na margem. Resta apenas receber a arte sem a preconcepção da própria inteligência egóica, pois, se me dizem que estou errado, talvez eu não esteja, mas são ataques de uma minoria menos inteligente que eu, mais primitiva, que considera tudo arte; e se tudo é arte, nada é arte. Mas talvez seja sim arte, e só falta amor pela própria arte para enxergar. Haja coração.