★★★★☆
4/5
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“Diamond life lover boy”. Este é o verso pelo qual a nigeriana Helen Folasade Adu — a voz principal e protagonista da banda britânica Sade (lê-se: “shadei”) — se apresenta. O verso, que é o primeiro da faixa de abertura “Smooth Operator”, é emblemático para além de uma autorreferência ao título do disco: “Lover boy” descreve precisamente o personagem da canção, além de também descrever a história de Sade enquanto banda e ato artístico. Essa história é marcada tanto por amores, positividade e pelas mazelas do sentimento quanto pelos objetos de tais amores, sejam estes pessoas, momentos ou encontros.
Ainda que por vezes seja lida como tediosa — algo comum nas críticas ao smooth soul —, Sade está em um panteão próprio de atos musicais britânicos e da “world music”, termo intransigente e antiquado que ganhou popularidade nos anos 80. Isso se dá através da infusão de ritmos caribenhos e africanos no som sofisticado, presente nos saxofones e na rouquidão vocal de Helen. Diamond Life é enraizado no contexto do new wave, apesar de graciosamente se afastar da mesmice que flagelava o gênero britânico num momento posterior ao Remain in Light, álbum-auge da banda inglesa Talking Heads e égide do wave britânico.
É um álbum inegavelmente inglês nas suas maquinações de som e experimentações rítmicas, que advêm da imigração em massa de países do sul global, muitas vezes ex-colônias ou vítimas do imperialismo do Reino Unido, para o território inglês propriamente dito (principalmente nos subúrbios de Londres e Manchester) ocorrida no final dos anos 80 e começo dos 90. Também por isso, é um álbum inegavelmente imigrante no som, nos temas e na voz da cantora. E, por isso, é autor de um esquenta-coração singular às obras de Folasade Adu, evidente na descrição tanto dos amores quanto da superação destes.
É, também, bastante setentista em sua alma soul e smooth jazz, em seus meandros melancólicos e sensuais e nas homenagens veladas, ou não, às instrumentações do jazz — cheias de jams dignos de George Benson ou de Rahsaan Roland Kirk — e aos ícones americanos do soul e da música de raiz negra. Passados ardentes, futuros promissores e presentes reais são evocados por dores pungentes, que latejam na eloquência rouca de Sade, e por amores agridoces, inflamados pelos instrumentais.
O corpo político do smooth soul é por vezes deixado de lado em decorrência de um olhar de exotismo com as influências não-estadunidenses, mas é primário em seu desenvolvimento e no seu peso cultural, vide Songs in the Key of Life de Stevie Wonder, ou What’s Going On de Marvin Gaye, ambas obras presentes no imaginário popular e nas referências do mainstream americano, e ainda assim, brilhando no seu peso político e nos seus protestos pró-Civil Rights nos anos 1970. “Smooth Operator” é um titã, um marco do smooth soul moderno que recentemente ganhou nova leva de popularidade graças ao aplicativo TikTok. Ao mesmo tempo, a música representa o início de um trabalho que homenageia mestres do soul americano, como Al Green, Marvin Gaye e Donny Hathaway, com sua sensualidade em voz e em instrumento, abordando temas amorosos, melodramáticos, sobre as dores e delícias de amar.
Com “Hang On to Your Love” a cantora adota uma sonoridade funk, numa pegada Funkadelic e Kool & The Gang, enquanto profere versos de protesto sobre um amor que, para crescer e se fortalecer, precisa manter-se num só foco. Já em “Frankie’s First Affair”, a banda fortalece sua estética baseada nos sons do saxofone e em ritmos tropicais, com letras por vezes densas. Sade Adu canta sobre um casal que se vê envolto em traições amorosas, centrando-se em Frankie, a personagem-foco da canção.
Seguindo com “When Am I Going to Go Make a Living”, inspirada por “Innervisions” de Stevie Wonder, Sade denuncia uma situação financeira desfavorável não apenas a ela, mas também àqueles em situações semelhantes, abordando questões raciais e de gênero. Em “Cherry Pie”, traz de volta a sonoridade groove funk, numa linha de baixo deliciosamente dançante. “Sally” destaca-se como um dos pontos altos da carreira vocal de Helen Adu, com melindres melódicos que expressam a tristeza e os desafios enfrentados pela vida de Sally, a personagem retratada em seus versos, numa melancolia regada a um soul lento. A última faixa, “Why Can’t We Live Together” inicia-se com ritmo de bongôs e uma linha de baixo quase tóxica de tão bem encaixada, evoluindo para um órgão elétrico e, finalmente, para a voz explosiva de Sade: “Tell me why, tell me why / why can’t we live together?” Ela protesta por meio do slow-jam digno de Marvin Gaye, antes do órgão elétrico roubar de novo a cena com seu groove.
Em resumo, Diamond Life é o início da genialidade de uma das maiores bandas da história do Reino Unido e de sua estrela, Helen Folasade Adu, cuja sua presença altiva e marcante perdura como um ícone na cultura mainstream ocidental. Este álbum também revela as raízes da experimentação musical que floresceriam em Love Deluxe e Promise, seus álbuns subsequentes. Desde o seu nascimento na Nigéria, então colônia inglesa, até sua ascensão ofuscante e as profundas reflexões de sua persona refletidas em sua voz, Sae é a lapidadora de uma diamante de rara qualidade. E é claro, a carreira de Helen dará frutos até mais fartos nos anos subsequentes, mas o sabor que fica é sempre o mesmo, independente de quem analisa: pouquíssimos artistas podem se gabar de um álbum de estreia tão completo, tão único, tão seu. E é essa a pintura que Sade cria ao longo dos anos, a de que seu trabalho é tão somente seu, sua histórias, dolorosas tanto para si quanto para aqueles que ouvem, seus amores, visivelmente ardentes, sim, mas queimando mais intensamente dentro de si do que em qualquer ouvido ou pensamento alheio. É a arte quem brilha aqui, e agradecem aqueles que podem testemunhar sua glória.
Selo: Portrait
Formato: LP
Gênero: R&B / Smooth Soul, Sophisti-Pop