Classificação AT | Electroclash


Conheça o gênero que pariu a Lady Gaga e que revolucionou a música pop e eletrônica.

Quando se pensa em música pop e eletrônica, é impossível não notar a diferença entre o material dos anos 80-90 e o dos anos 2000 em diante, tanto em estética quanto em conteúdo. Isso se deve, principalmente, por um mini-gênero de música eletrônica surgido no fim dos anos 90 e terminado no meio dos anos 2000 — além, claro, da mudança do mercado musical após o advento da internet. Esse gênero, esse alucinado, inconcebível, glamoroso, moralmente corrompido e apaixonante gênero recebe o glorioso nome de electroclash.

Como o electroclash surgiu?

Em um estágio da música eletrônica em que o techno estava em seu auge criativo e comercial, as coisas pareciam muito chatas. Muito, muito — e digo-lhe: era muito mesmo — chatas. Afinal, a quem interessa uma música que se baseia unicamente em expansão de técnicas de produção, em intelectualismos baratos de quem ouviu Aphex Twin demais? Uma música que soa muito bem, que emprega o uso de repetições como ninguém, que eleva o sentimento de profundidade ao limite físico do ouvido humano, mas que é indubitavelmente, inescapavelmente, chata? A quem ela interessa? Certamente, não aos pioneiros do electroclash: Larry Tee, DJ Hell, Peaches, Miss Kittin e outros se movimentaram para criar o suprassumo da música sexo-lixo-rave; os filmes de terror trash, o cinema B da música eletrônica. O famigerado electroclash.

Miss Kittin performando em 2012, uma década após seu auge comercial.

O gênero/trend/movimento ergueu-se como uma renascença do synthpop e do electro, mas tomando muita influência — principalmente em discurso e estética — do new wave, da liberdade sexual do punk e do filme indie-cult Liquid Sky. “O electroclash deu o dedo do meio aos egos e valores estabelecidos da época e se estourou em um flash desenfreado de cor e atrevimento polissexual”, diz Joe Muggs, grande jornalista britânico de música eletrônica, para a Fact Magazine, exemplificando perfeitamente o caráter queer e sexual do electroclash através da forma punk de protestar. Dessa forma, é fácil pensar no gênero como um retorno à música eletrônica oitentista, mas que se utiliza de influências contemporâneas e principalmente das ideias rítmicas do techno, embora fizesse oposição ao mesmo. Assim, o electroclash representou uma mudança estética e discursiva que por pouco não pode ser descrita como radical.

Em 1997, a faixa “Space Invaders Are Smoking Grass” foi lançada como parte do EP de mesmo nome, feito por I-F, DJ holandês. Ela é amplamente considerada como a virada de chave para o surgimento do electroclash, principalmente por servir de inspiração para a dupla Miss Kittin & The Hacker na criação de “1982”, o (provável) primeiro single autoconsciente de electroclash. Simultaneamente, a gravadora International Deejay Gigolo Records aos poucos parou de lançar EPs de electro para se tornar a casa oficial do electroclash. Com esses dois fatores, pouco mais de um punhado de artistas se juntaram para dar início ao movimento, como ADULT., Peaches, Chicks on Speed e Fischerspooner. O último, em especial, é o detentor do maior hit do gênero: “Emerge”.

Warren Fischer, do Fischerspooner, performando com seu grupo de dançarinos em 2017.

Foi com essa progressiva aglomeração de artistas que, em 2001, o Electroclash Festival surgiu. Com DJ Hell como anfitrião — patrono importante do movimento —, o festival deu início, de fato, à febre do electroclash. De 2001 a 2005, o mundo — principalmente as revistas da época, que ficaram obcecadas com o estilo — virou as caras para o futuro da música pop e eletrônica. A recepção, no entanto, foi extremamente negativa; imediatamente julgaram o gênero, afinal, era extremamente queer e sexual, sobretudo por conta das notáveis interseções com a cena riot grrrl e com o retorno do synth punk.

Os grupos faziam questão de subverter papéis de gênero na música eletrônica, tanto em performances quanto em conteúdo. Isso se deve, em especial, pela produção eletrônica ser normalmente encarregada a mulheres — não esqueçam: a música eletrônica é um espaço dominado por homens até hoje —, além de frequentemente apresentar letras feministas e a favor da liberdade sexual; é impossível ignorar como Madonna, David Bowie, Lou Reed, New Order e The Stooges foram, em geral, influências marcantes ao movimento. A exemplo, Peaches, Chicks on Speed, Lesbians on Ecstasy e a lendária Miss Kittin eram grupos e atos solo femininos que exploravam o sexo a partir da perspectiva feminina de maneira fenomenal — uma das faixas mais infames que influenciou o electroclash se chama, literalmente, “Save The Planet, Kill Yourself”, em apoio à luta antinatalista feminista.

Chicks on Speed em performance ao vivo em Riddes, na Suíça.

Imagine o seguinte cenário: Começo dos anos 2000. Os clubes da Europa ocidental inteira (em especial os britânicos) estavam empanturrados de jovens adultos que, despretensiosamente, haviam cheirado algumas (muitas) carreiras de cocaína de qualidade. Estavam elétricos, pulando, se batendo, se esmurrando, pegando em partes corporais inesperadas uns dos outros... garotos indie, garotas punk, não-binários techno-heads todos compartilhando o mesmo lugar; uns altos, outros baixos, alguns drogados, muitos alcoolizados, poucos héteros e muitos queer. Uma massa totalmente heterogênea de gente(s). Mas sabe o que tinham em comum? Todos clamavam pelo electroclash.

Clamavam insanamente pela seriedade irônica, pela repetição, pela simplicidade do gênero; queriam dançar, não, corrijo-me, queriam viver o sexo, as drogas, viver a rave por completo. Queriam beijar humanos de todos os tipos, vestir roupas dos anos 80 — lembra de Bon Jovi? Essas roupas. — e se apaixonar intensamente pelo conceito daqueles poucos metros quadrados em que a rave se localizava. Ledo engano, perdão: ela se espalhava pelo mundo inteiro. Da Alemanha ao Canadá; era lindo. Electroclash era arte de performance, música pop, contracultura e muito mais. Era tudo que merecíamos e precisávamos.

Performance de Peaches usando uma camisa com o dizer “Obrigada Deus pelo aborto”.

Como o electroclash soa?

Das influências citadas, o electro, o synthpop e o techno são as mais importantes. Instrumentalmente, é fácil detectá-lo pelas linhas de baixo pulsantes, vindas do electro e synthpop kraftwerkianos, e pela bateria ora extremamente simplista, ora metálica-industrial, ora tão barata quanto uma balinha de maçã-verde. Dando sequência, a parte melódica é muito variada, mas se caracteriza, principalmente, por sintetizadores ascendentes e mudanças melódico-estruturais semelhantes ao techno, mantendo-se simples enquanto adiciona pequenas, sutis e recompensadoras variações ao longo das faixas, normalmente longas.

Vocalmente, o estilo se caracteriza por performances “dead-pan”, ou seja, que beiram entre a fala e o canto, com uma ímpar seriedade irônica. Após um tempo, porém, o estilo passou a se desassociar desse artifício, em especial nos grupos mais relacionados ao punk — que, inclusive, incorporaram guitarras e outros instrumentos do punk à sua arte, dando, assim, origem ao electropunk, subgênero de synth punk e electroclash. Além disso, vale a pena destacar que não é incomum presenciar vocais de vocoder no gênero, influência do electro-disco.

No geral, as letras são, como já mencionado, focadas no estilo de vida da rave, feministas, queer, lixo-luxuosas, cheias de sexo e repletas de conteúdo satírico para com grupos opressores. Contudo, uma parte considerável de electroclash é puramente instrumental, especialmente os EPs e singles feitos entre 1997 e 2002. Além disso, mesmo que não esteja relacionado com sonoridade em si, é muito importante denotar que o electroclash tinha uma relação muito forte com a arte de performance e com a moda, influenciadas pelo androginismo de Liquid Sky, David Bowie e outros.

Indicações:


Space Invaders Are Smoking Grass
I-F

O começo de tudo. Influenciado por Afrika Bambaataa e outros atos de electro dos anos 80 — que, curiosamente, têm mais a ver com hip hop que com música eletrônica —, I-F produziu o EP (e faixa) que redefiniu o que significava música pop e eletrônica. É, também, um de meus projetos de (quase) electroclash favoritos. Em seguida, escute outros (quase) electroclash como “Save The Planet, Kill Yourself”, “Missy Queen's Gonna Die / Go!” e “Vicious Game”, caso goste do EP.

Formato: EP
Ano: 1997




Will Save Us All!
Chicks on Speed

Um projeto fortemente influenciado pelo punk e pela música industrial, Will Save Us All! é gigante. Gigante em discurso, em sonoridade, em tudo que definiu o lado electropunk do electroclash. Caso se interesse por esse lado mais punk, ouça From the Desk of Mr. Lady, de Le Tigre, Lesbians on Ecstasy, de Lesbians on Ecstasy, e Danse Macabre, de The Faint.

Formato: LP
Ano: 2000




The Teaches of Peaches
Peaches

Meu projeto de electroclash favorito, The Teaches of Peaches é uma explosão de experimentação, diversão, feminismo e sexo. Ele — maravilhosamente, inexplicavelmente — une os lados mais experimentais da música punk com sua origem “pop” e coloca-os sob o enorme, furado e distorcido guarda-chuva da música eletrônica. Blacklist, de Kap Bambino, Fatherfucker, de Peaches, e “Paris Hilton”, de Mu, são ótimas indicações, caso goste do LP.

Formato: LP
Ano: 2000




First Album
Miss Kittin & The Hacker

O projeto mais importante para o electroclash. Embora apareça aqui após três discos, isso se dá apenas por conta das datas de lançamento das indicações anteriores, já que essa é a introdução ideal ao gênero; é ponto pacífico. First Album é, de fato, repetitivo. Muito repetitivo. Mas é justamente por ser uma fundação tão sólida do movimento que ele é tão icônico; além do mais, a variedade encontrada nos discos e singles que ouvirá subsequentemente com certeza é mais impressionante após ouvir o disco.

Caso goste, não deixe de checar “Rippin Kittin”, de Golden Boy, com a própria Miss Kittin, “Sunglasses”, de Tiga & Zyntherius e Kittenz and Thee Glitz, de Felix da Housecat — um artista que é bem importante ao gênero, mas que é mais distante da cena; mais sério.

Formato: LP
Ano: 2001




Poney EP
Vitalic

Representando o lado instrumental do gênero, Poney EP faz parte da linha tênue entre o electroclash e electro house, que será discutida adiante. É um disco ousado para os padrões simplistas de ambos gêneros, intrinsecamente semelhante ao objetos das críticas do electroclash (o techno), mas ainda sim perfeitamente representativo da cena. Caso goste, cheque New Phonies, de ADULT., Nite Versions, de Soulwax e Ok Cowboy, de Vitalic.

Formato: EP
Ano: 2001



Bônus: E depois?

Eu mencionei, diversas vezes, que o electroclash abriu portas para uma mudança extrema na música eletrônica e pop, mas por quê? Primeiramente, porque ele deu origem/auxiliou a criar uma miríade de gêneros essenciais aos tipos musicais citados, a exemplo do electro house, que deriva diretamente dele, o new rave — lembram de CSS? —, que é uma junção esquisita do electroclash com alternative dance, e, o mais importante, o electropop. Sim, o electropop só existe pois, há duas décadas atrás, lésbicas estavam gritando sobre pegar em peitos. O mundo é lindo.

Segundamente, porque é nítido como o electroclash deu gás à cultura do mau gosto, do mau cheiro, do pútrido, da aplicação da moda antiga à atualidade… ele deu gás ao camp. Se artistas como Lady Gaga existem hoje em dia — e tenho certeza que vocês compreendem o impacto que Lady Gaga causou no mundo — é porque Miss Kittin cantava sobre receber boquetes no banco de trás em 2001. O principal grupo que contribuiu para essa transição ao electropop foi Ladytron, especialmente com a música “Seventeen”, que entraria nas indicações se não fosse tão electropop.

Para ilustrar essa mudança na música pop, montei um pequeno chart do que caracterizo como a segunda onda do electroclash, compondo, principalmente, os atos de electropop que têm raízes profundas no gênero:


Note que a assiduidade do electroclash em músicas gigantescas, como SexyBack, demonstram a pura força que ele teve na música pop. A teoria do barulho, da desordem, da imundice anti-sanitária infectou o jeito que a música pop se configura para todo o sempre. Ao invés do caráter limpo que grande parte do pop-R&B dos anos 90 e da primeira metade dos anos 2000 tinha — apesar dos efeitos que o new jack swing e o pop industrial provocaram no pop —, a lógica de infestar a sonoridade com garranchos, sintetizadores rasgados e batidas insuportavelmente altas penetrou, de vez, no pop por conta do electroclash; e, felizmente, nunca sumiu.

A presença de Crystal Castles no chart — que, no imaginário popular, é a face do electroclash pós-anos 2000 — se faz essencial para o entendimento do desenvolvimento de outros gêneros adjacentes a este, como o bitpop, o já citado new rave e o electro-indie. É, também, impossível ignorar a presença de Lady Gaga (e de Kesha), que, embora dificilmente tenha seu trabalho aproximado do electroclash, utiliza fortemente da teoria da sujeira e do camp em seu trabalho, de maneira quase idêntica de como projetos como o Peaches usavam.


Por fim, é importante destacar que uma terceira onda do electroclash está em ascensão. Com a chegada do Y2K, é óbvio que o electroclash também viria nessa onda de nostalgia e resgate — da mesma maneira que o gênero é, em si, um resgate do synthpop oitentista. Chamo atenção ao fato de que, interessantemente, o álbum pop mais relevante da década até agora também se inclui nessa categoria de retorno ao electroclash: BRAT. Ou seja, daqui em diante veremos o electroclash retornando com tudo no cenário mainstream. Mal posso esperar.
Sophi

Estudante, 18 anos. Encontrou no Aquele Tuim uma casa para publicar suas resenhas, especiais e críticas sobre as mais variadas formas de música. Faz parte das curadorias de Experimental, Eletrônica, Rap e Hip Hop.

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