Opinião | Precisamos nos desvincular das cartilhas

Imagem: reprodução / Instagram

Algo bastante comum no meio da análise artística é o debate entre uma possível objetividade da análise da arte. Hoje em dia é quase tomado como verdadeiro que não existe possibilidade da existência de objetividade na arte, algo que eu particularmente não seria tão incisivo em concordar quanto vejo a maior parte das pessoas fazendo, mesmo que eu não acredite também nessa possibilidade. Porém, mesmo dentro do campo da subjetividade, ainda existe uma vontade em ser objetivo, por parte dos escritores de crítica hoje em dia. E isso é provavelmente uma das questões mais complexas de se livrar na escrita crítica.

Há algum tempo estava conversando com um amigo sobre a carreira do Brian Eno, temos opiniões muito diferentes sobre os discos no geral, ele não gosta praticamente de nenhum trabalho do Eno de música ambiente — que provavelmente são meus favoritos. Alguns dias depois ele reescutou um desses álbuns e me escreveu dizendo: “É muito melhor do que eu lembrava, foi muito único. Parecia que eu estava realmente no espaço, a maior parte da duração”, além disso complementou: “mas não parece nem um pouco com o Music for Airports, não é tão repetitivo”. A parte mais marcante para mim é ele sintetizar uma experiência pessoal de forma tão clara, logo em seguida também conseguir dizer o que esse álbum não tem. Óbvio que tudo isso em mensagens do Whatsapp, sem a intenção de articular com mais profundidade.

Ainda que essas duas mensagens não pudessem ser postadas e consideradas uma resenha (pela maior parte das pessoas), ambas as coisas que eu destaquei no parágrafo anterior estão bastante em falta nas análises hoje, não só de música, mas principalmente de música. Existe sim uma vontade de soar impessoal e “profissional” que afasta o texto da experiência, o que eu acho bastante nocivo, não tem como chegar ao objeto artístico sem esse contato — esse confronto, ou diálogo. Não tem como escrever sobre música sem considerar o que você mesmo ouviu, sentiu, ou pensou ao ouvir aquele trabalho. Certamente, num mundo como o atual, em que é quase crime dizer que toda crítica é meramente opinativa e enviesada isso pode soar ruim para os próprios redatores, tem muita gente que se ofende com textos, mas é como as coisas são, alguns posicionamentos precisam ser maiores que o medo de ameaça na internet.

Pode parecer besteira, mas descrever o que as coisas não são é muito mais difícil do que dizer o que elas são, ainda mais numa crítica. O impulso primário é sempre analisar o que efetivamente tem ali, e isso traz um diálogo com a objetividade. Mesmo que talvez seja algo que você pensa que existe, e não seja necessariamente verdade, a intenção é que o seu leitor encare a obra desse modo. Além de que geralmente os críticos não gostam de se posicionar, o que eu vejo sendo dito é que o crítico apenas enxerga algo que está na obra e extrai, transforma em texto argumentativo, mas será mesmo?

Ao descrevermos o que não está em um trabalho artístico, geralmente nos deparamos com mais perguntas. Para dar um exemplo recente, muito se falou sobre os aspectos neo-psicodélicos do último lançamento da dupla Magdalena Bay, mas ainda que esse seja um álbum de neo-psicodelia, ele não é o mesmo tipo de neo-psicodelia que encontramos ouvindo tame impala, por exemplo, mas sim, mais próximo do tipo que ouvimos em Congratulations do MGMT, ou nas músicas pop psicodélicas dos Beatles. Mesmo que seja óbvio dizer que é neo-psicodelia, existe menos objetividade nessa afirmação do que estamos acostumados a pensar, pois isso não diz o que é possível pensar e sentir ao ouvir esse disco, apenas abre um leque de possibilidades de como ele pode soar. Também, se o texto apenas dissesse que é um álbum que dialoga com Beatles e MGMT, poderia ainda deixar subentendido que uma relação com Tame Impala é uma possibilidade. Claro que o complemento pode estar no restante do texto, mas o quanto vale a pena fazer essas afirmações vazias, apenas para encher o texto, ou mostrar conhecimentos “objetivos”?

Se posicionar é um medo geral hoje, parece que a única forma de escrever em que você pode afirmar “estou escrevendo a partir da posição x”, ou “escrevo após uma experiência negativa com esse álbum”, ou “tive que ouvir muitas vezes, pois acabei dormindo no meio” é através de comentários em redes sociais. Muitos afirmam ser “antiprofissional” e a articulação sempre deve partir de aspectos que estão no álbum e não da própria experiência de quem o escutou. Isso é absurdo, não existe nenhuma essência em um álbum, existe música, e ela não é nada até ter alguém que a escute. Antes de escutá-la todo mundo tem sua própria forma de pensamento, um modo de vida específico e sempre entra em contato com essa música com todos esses outros aspectos internos. É um erro, então, pensar que o posicionamento pessoal, ou uma afirmação completamente enviesada não poderia ser profissional — com isso eu estou pensando também que a pessoa dá sim a devida atenção para a música, separa um momento do seu dia para ouvir (com atenção), pensar sobre o que ouviu e escrever.

No fim, mesmo que pareça tão claro para a maioria das pessoas que hoje tudo está relacionado com experiência e subjetividade, a escrita continua com um impulso objetivo, continua sendo muito descritiva, pensando em tudo que está ali, precisando falar de todas as músicas, encaixá-las em todos os gêneros que existem ao longo do álbum… quando muitas vezes existe apenas um aspecto daquela obra que já te preenche uma experiência completa. Music for airports realmente é um disco bastante repetitivo, mas é essa repetição que o torna tão único, capaz de deslocar o ouvinte para um outro espaço, em que o silêncio e a música estão igualmente presentes, e isso na minha experiência é suficiente. Precisamos nos desvincular das cartilhas da escrita sobre música, de estruturas específicas para escrever textos, de afirmações vazias que fingimos possuírem significado, das descrições excessivas e do medo de se posicionar.
Tiago Araujo

Graduando em História. Gosto de música, cinema, filosofia e tudo que está no meio. Sou editor da Aquele Tuim e faço parte das curadorias Experimental, Eletrônica, Funk e Jazz.

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