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E se você inesperadamente visse sua vida desmoronando num piscar de olhos? Com o status de uma das maiores estrelas da música despencando na sua frente após descobrir a infidelidade do seu marido. O que você faria? Bem, eu pessoalmente não saberia o que fazer, mas Beyoncé decidiu liberar todo o seu ressentimento, raiva e tristeza produzindo o que seria sua obra mais íntima na época. E assim, no primeiro semestre de 2016, ela lançaria o álbum em que puxaria todos os plugues de sua intimidade e decidiu falar sobre o quão dolorosos foram seus últimos dois anos: bem-vindos ao ácido, debochado e reflexivo Lemonade.
Beyoncé passava por um momento turbulento em sua vida pessoal, começando em um dos maiores eventos de moda do mundo, o Met Gala, onde um vídeo de uma câmera de segurança vazou mostrando sua irmã Solange Knowles agredindo seu marido Jay-Z. Após essa polêmica, surgiram rumores de que durante sua turnê conjunta com Jay-Z, a On The Run Tour, houve discussões entre o casal, mas ainda não havia uma verdade sobre o que de fato havia acontecido para levar ao rompimento entre o casal. No entanto, com a globalização das mídias sociais, também houve espaço para os fãs criarem teorias sobre o que de fato havia acontecido, uma delas era que ele a havia traído.
Além da vida privada conturbada de Beyoncé, os Estados Unidos passavam por um processo eleitoral extremamente complicado, em que Donald Trump emergia como um conservador que era apoiado por massas racistas, xenófobas e machistas. Como resposta a essa onda política que recaia sobre Beyoncé o tempo todo, ela decidiu usar como inspiração, durante toda a era Lemonade, roupas que contavam a história da comunidade negra na América do Norte, essencialmente as que faziam referência ao movimento dos Panteras Negras, como em sua performance no Super Bowl de 2016. E foi justamente ali que Beyoncé começou sua nova era com a faixa “Formation”, uma mistura temática de empoderamento com o que quer que fosse trazido por sintetizadores afiados, em que ela reafirma suas raízes negras, sua família e seu orgulho por sua negritude:
Meu pai é de Alabama, minha mãe de Louisiana
Você mistura esse negro com essa crioula e faz uma Texana
Gosto da minha pequena herdeira com cabelo de bebê e cabelos africanos
Gosto do meu nariz negro com narinas igual aos Jackson Five
A faixa foi lançada um dia depois do aniversário de 21 anos de Trayvon Martin e um dia antes do aniversário de 29 anos de Sandra Bland, vítimas da brutalidade racial e mártires do movimento Black Lives Matter (BLM).
Lemonade começa contando a história de uma mulher e um mágico, que sempre desaparece deixando apenas um rastro: seu cheiro. “Pray You Catch Me” é o início da morte de Beyoncé, com seu canto expressando ressentimento e tristeza; o que já demonstra a traição de Jay-Z, com a suposta “Becky do cabelo bom”. A produção da faixa conta com o cantor americano Kevin Garrett e o produtor Jeremy McDonald, que conseguem trazer toda a melancolia da desconfiança de Beyoncé com instrumentos mais pesados, teclados baixos e outros artifícios para ambientar o cenário na mente de alguém que enfrenta essa triste situação.
A lista de faixas de Lemonade é dividida em capítulos, cada uma contando um fragmento da vida de Beyoncé durante a separação e reencontro do casal. Uma das faixas mais diferentes deste álbum e da discografia da artista é "Don't Hurt Yourself", uma música com influências de rock e colaboração com Jack White, em que vemos uma Beyoncé furiosa, entendendo que precisava contar a verdade ao ex-marido. A canção tem instrumentais que buscam trazer uma espécie de grandeza, por exemplo, o uso da bateria aqui é muito bem aproveitado, principalmente quando chegamos ao refrão onde Beyoncé solta sua voz estrondosa; há uma sinceridade no que é cantado, o que me faz pensar que a gravação de todas as faixas foi sem grandes cortes e sem muitas sessões, um único take para se expressar e liberar toda a sua dor de uma só vez.
Essa dor recai através de um declínio para reconstruir a maturidade, erros e problemas que foram vividos anteriormente. Lemonade na primeira metade nos mostra uma Beyoncé vingativa, melancólica e confusa, mas "tentando" superar a ferida que Jay-Z a fez ter. "Sorry" mostra essa persona de uma Beyoncé festiva, querendo aproveitar seu término mesmo quando em seus pensamentos mais intrusivos ela ainda estava pensando no que aconteceu, como ela diz:
E eu não me sinto mal por isso
É exatamente o que você ganha
Pare de interromper meu trabalho (você está interrompendo meu trabalho)
Não estou pensando em você [...]
Elas estão espionando pela porta de trás
Ele só me quer quando não estou lá
É melhor ele ligar para Becky do cabelo bom
É melhor ele ligar para Becky do cabelo bom
Afinal, onde vemos uma Beyoncé entrando no maior dos seus declínios? Quando ela mesma percebeu que precisava recuperar a própria consciência e refletir sobre si mesma se esse era seu destino, o mesmo destino de seus ancestrais. “6 Inch”, parceria com The Weeknd, não é apenas uma música sexy; a canção transita o lado furioso de Beyoncé para o lado reflexivo sobre sua vida, sua ancestralidade e os problemas sociais em que pessoas negras estão inseridas. A produção fica por conta de BOOTS, que já havia trabalhado com a artista no autointitulado Beyoncé (2013). A peça traz um ar misterioso e sensual, com batidas super graves, que contrastam com a composição da faixa, responsável por transmitir que a vingança de Beyoncé não faz mais sentido. O ponto alto da faixa é definitivamente o final, que Beyoncé se desfaz em suas próprias tristezas e entende que, mesmo passando por tudo o que passou, ela ainda ama seu marido.
Ooh, garoto, eu vou fazer você sentir
Você sempre vai voltar pra mim
Voltar, voltar
Voltar, voltar
Voltar, voltar
Aqui jaz uma Beyoncé, e vemos o renascimento de uma nova pessoa, mais reflexiva e que começará a ver se realmente deve perdoá-lo ou não. Essa reflexão começa no passado, em “Daddy Lessons”, uma música country em que Beyoncé fala sobre seu legado com seu pai, como ele lhe ensinou muitas coisas, mesmo tendo machucado sua mãe da mesma forma que ela foi machucada. Mas não vamos nos aprofundar nessa parte, vamos para uma das, senão a melhor faixa de Lemonade, “Love Drought”. A música fala sobre fama, aborda como ela mesma não quer nada que Beyoncé tenha se não estiver com ele. A produção é feita por Mike Dean, produtor comumente usado por rappers como Kanye West e Travis Scott, e é marcada por sintetizadores baixos com uma espécie de “chiado” que para mim mostra essa carga negativa das inseguranças de Beyoncé com o reflexo de toda essa história.
Toda a suavidade que “Love Drought” traz me conquista porque começamos o álbum em um ambiente caótico, destrutivo e melancólico, e aqui vemos o completo oposto, um lado calmo, que mesmo que permaneça meramente melancólico, ainda consegue trazer o aspecto de esperança para que o relacionamento de Beyoncé e Jay-Z possa voltar a ser como era antes. Vemos mais as marcas da história de redenção do rapper em seu álbum 4:44, mas Beyoncé sutilmente coloca sinais de que ele estava de fato arrependido por ter feito aquilo com ela.
Como mencionado anteriormente, Lemonade não é apenas um álbum sobre separação/traição, ele também aborda a luta contra a violência policial nos Estados Unidos e o racismo oculto na sociedade em vários aspectos, como o social e o romântico. Em vários trechos, a artista fala sobre a chamada “Becky do cabelo bom” que faz alusão a termos racistas que falam sobre nossos cabelos cacheados e crespos; esse tipo de cabelo é considerado “ruim” e o cabelo liso é “bom”. Outra veia racial que vemos é a ancestralidade, como também mencionado anteriormente, o pai de Beyoncé, Matthew Knowles, traiu a mãe de Beyoncé, que também passou pelos mesmos processos. Em certos trechos de faixas não mencionadas, vemos que isso era geracional, uma “maldição” pela qual todas as mulheres de sua família passaram, o que condiz com a vida amorosa de uma pessoa negra.
Historicamente, pessoas negras não foram consideradas bonitas por grande parcela da sociedade, devido às nossas características que fogem do padrão de beleza reproduzido. Por exemplo, eu era a mais feia da sala, e a mais bonita era a menina branca que se encaixa nos estereótipos do padrão de beleza europeu. Hoje em dia, vemos uma representação muito mais forte da beleza negra, mas na minha infância e na infância de muitas pessoas negras, víamos como a mídia não se importava com a representação da nossa beleza, e é isso que afeta a vida amorosa de uma mulher negra, onde somos rejeitadas e excluídas de qualquer demonstração de afeto e somos hipersexualizadas para o prazer de muitas pessoas.
A faixa “Freedom” representa não apenas o fim da maldição que atingiu sua família, mas há uma subjetividade na letra na qual podemos interpretá-la como uma mensagem de repúdio à violência policial que estava ocorrendo em 2016.
Liberdade! Liberdade! Eu não consigo mе mover
Liberdade, mе solte! Yeah
Liberdade! Liberdade! Onde está você?
Porque eu também preciso de liberdade!
Eu quebro as correntes sozinha
Não vou deixar a minha liberdade apodrecer no inferno
Hey! Eu vou continuar correndo
Porque um vencedor não desiste de si mesmo
A música abusa de elementos de banda marcial, com tambores e batidas fortes como se estivessem pés marchando e os vocais de Beyoncé acompanhando, o que reforça o intuito de subjetividade da mensagem passada para nós ouvintes.
Ao longo da jornada, vimos os altos e baixos da vida de Beyoncé, sua reconciliação com sua ancestralidade e com a sociedade e seus impactos raciais no mundo. A faixa final, "All Night", é um suspiro para essa história. Produzida por Diplo, a música nos conta a história em que somos humanos, temos nossos erros, fracassos e acertos. A faixa brinca com os vocais de Beyoncé, que encantam os ouvidos em partes essenciais para marcar aquele momento em nossas memórias e com instrumentos de sopro no refrão que entregam toda a vida da produção.
Quando começamos a falar de Lemonade, é difícil falar dele apenas superficialmente. Além de ser um mero álbum de 2016, é uma forte carta de repúdio à política americana e uma carta de amor à própria artista. Toda a construção artística deste disco fomentou a Beyoncé que conhecemos hoje. Sem Lemonade, provavelmente não veríamos um processo tão árduo em produções audiovisuais que vão além dos videoclipes. Este é definitivamente um dos álbuns mais importantes do mainstream e da música na última década. O resultado final desta resenha é uma ótima reflexão sobre a vida, sobre minha confiança em mim mesma, como diria Hattie White, avó de Jay-Z:
Eu tive meus altos e baixos, mas sempre encontrei a força interior pra me elevar. Eu fui servida com limões, mas fiz uma limonada.
Selo: Parkwood
Formato: LP
Gênero: Pop / R&B Contemporâneo