Crítica | Temporary Stored II


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Enquanto instituição e espaço fomentador e formador das artes, os museus do Norte Global ainda postulam um fardo sobre a memória do não-Ocidente: a manutenção de suas estruturas coloniais, que se retroalimentam e reformulam suas bases ao longo do tempo. Apesar de esse ser o ponto central nos debates sobre a função do museu contemporâneo, ainda é flagrante como os museus europeus e estadunidenses mantêm diversos artefatos históricos, artísticos e culturais de povos africanos e indígenas, tomados através da violência colonial.

Porém, existe uma carência em observar os impactos dessa lógica de saqueamento para o patrimônio imaterial — e isso é uma falha grave. Os sons são tão importantes quanto as obras materiais; é só pensar na forma como a comunicação e tradições orais são parte indissociável de grande parte dos povos originários e de África ao redor do mundo.

KMRU entende a urgência e desenvolve um desejo latente em contribuir com a mudança desses paradigmas: ele dribla as burocracias e consegue ter acesso ao acervo sonoro do Museu Real da África Central, na Bélgica. O resultado é o lançamento da primeira versão de Temporary Stored, em 2022. Nas faixas originais, o queniano trabalha esses arquivos nas suas bases da música ambiente, remixando e localizando-os fora do espaço-tempo colonizador. Ao mesmo tempo que demonstra respeito à memória e ao significado que essas tradições orais carregam, ele provoca uma crítica ponderada ao esvaziamento do olhar branco dominante que se apodera entre as quatro paredes de um museu ocidental.

Agora, KMRU relança Temporary Stored e expande o seu escopo e significado. Outros artistas se juntam ao projeto: Aho Ssan, Jessica Ekomane, Lamin Fofana, Nyokabi Kariũki e Bhavisha Panchia propõem o mesmo exercício em relação a outras materialidades dispostas em diferentes perspectivas. É uma extensão curatorial, que demonstra a rebeldia e o entusiasmo em desmanchar essas fronteiras coloniais e recuperar algo que nunca pertenceu ao Ocidente.

Temporary Stored II é mais que um exercício prático de resiliência sobre a retomada de espaço de países da África quanto ao seu próprio patrimônio roubado. Poderíamos até dizer que é uma das materializações vivas de como a arte não pode mais permitir que essas estruturas dominantes adentrem seus espaços se quiser continuar possuindo o mínimo de sentido em existir. Porém, como o Sul Global conhece muito bem os maniqueismos que fundamentam as lógicas de opressão ocidental, KMRU parece concordar com o que Gabi Ngcobo, curadora sul-africana, pensa sobre qual é o futuro que os museus deveriam seguir: o “suicídio institucional”.

Selo: OFNOT
Formato: LP
Gênero: Música do Continente Africano / Ambiente, Field Recordings, Sound Collage, Experimental
Felipe

Graduando em Sistemas e Mídias Digitais, com enfoque em Audiovisual, e Estagiário de Imagem na Pinacoteca do Ceará. É editor adjunto do Aquele Tuim, integrando a curadoria de Música do Continente Africano.

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