Especial | Como Bibi Babydoll é a Anti-Anitta


Quando Funk Generation saiu, lá em abril, uma maioria surpreendente não só gostou do álbum como afirmou, categoricamente, como um fato matematicamente incontestável, que ele era bom. Bom, bem feito, bem pensado, bem produzido, diferente, destacável, etc. Vi várias pessoas, tanto no meio jornalístico quanto em meio a meus amigos, no Twitter, em fóruns e em outros meios, proferindo tais decoros incansavelmente. Todos, sem exceção, os declamando da mesma maneira que se lista um inventário de um almoxarifado, apenas com a ocasional mudança na ênfase dos adjetivos.

O principal argumento usado — replicado de forma tão mecânica quanto idosos compartilhando a última corrente do PL no WhatsApp — foi o do quão responsavelmente bem o álbum exportava o funk para o resto do mundo. Ao mesmo tempo, porém, as pessoas afirmavam que o álbum não era funk. Por algum motivo, parece que introduzir estilos à desconhecidos se assemelha com o processo de vacinar alguém: primeiro mostre uma versão enfraquecida, sanitizada do gênero que a pessoa então irá se imunizar em relação às partes mais extremas dele.

Entretanto, essa estratégia é comicamente ineficaz quando se fala de funk. Adaptar o funk a uma lógica de reprodução aliada ao capital internacional, à repetição fordista na produção musical, é como armazenar lava numa tupperware, ou escrever um episódio de South Park para crianças, ou pescar numa piscininha natural; enfim, é ridículo. É uma lógica de submissão ao exterior, de que temos que agradar nossos senhores e, ao mesmo tempo, é uma traição ao cerne de multiplicação exponencial, incontrolável do funk.

É simplesmente impossível — e falo isso com completa certeza, porque já foi tentado inúmeras vezes — conter o funk em uma só coisa, em um só aspecto, em um modelo a ser replicado, incorporado, higienizado ou o que for. O funk é resultado de um processo único de reprodução popular, incomparável com qualquer outro fenômeno ao redor do globo e que não consegue ser domesticado pelo obsoleto modelo industrial da música pop. É uma das coisas mais lindas que o Brasil já produziu.

Mas se a estratégia de exportação de commodities culturais — ou até de um possível soft power nacional — não funciona com a nossa música popular atual, o que fazer para estabelecer pontes culturais entre o funk e o resto do mundo? Simples, se submeta a ele.

Em maio do ano passado, Bibi Babydoll explodiu de um jeito raramente visto no Brasil com a fantástica “Automotivo Bibi Fogosa”, uma música tão absurda que conseguiu ressuscitar, em um Brasil onde todos escutam funk, de um jeito ou de outro, o vinheteirismo cultural. “Isso não pode ser música”, é o que os maiores fãs de “Sweet Child O’ Mine (Violin Cover)” grasnaram ao quatro ventos. Enquanto isso, o mundo inteiro estava morrendo de calor e com suas xoxotas pegando fogo (talvez culpa do aquecimento global).

Note, no entanto, que eu não falei “o Brasil inteiro”, e sim “o mundo inteiro”. E isso não se resume aos americanos e ingleses, que já estão em êxtase com o funk há uns anos. Pessoalmente, já vi comentários em vietnamita em um automotivo do YouTube. Já falei com uma querida filipina e, logo após isso, com ume canadense sobre funk. Já vi um clipe de uma vtuber japonesa simplesmente apaixonada pelos drops do mandelão. E isso tudo sem contar a relação de países como a Angola, com o seu kuduro cheio de interseções com o funk.

Ou seja, o funk já está em processo de internacionalização, e está utilizando a sua própria forma de disseminação para isso. A consequência disso é que, ao invés de integrar os charts de pop (à exceção de “Alibi”) de forma semelhante ao que o reggaeton fez, o funk vai se popularizar pelas margens, pelos cantos, becos, vielas e esgotos mais esquisitos, experimentais e mutagênicos da Terra. Não existe outra consequência.

Todavia, e se, mesmo ciente disso, você quisesse ser uma diva pop do funk? Uma diva funk? Para não fracassar que nem Anitta, Beyoncé e outras wannabe a funkeira de shopping, você teria que se adequar a lógica do funk. Teria que se rebaixar a posição de mero sample aos produtores, mas ainda sim centrar uma música ou participação sua em seu carisma.

Bibi Babydoll é, de forma simples e direta, a maior diva funk do Brasil no momento. Não diva pop (quem quer ser isso, em pleno 2024, está atrasado), mas sim diva funk. Afinal, ela não compartilha espaços com as pops, nem busca algo semelhante, mas, ainda sim, se constitui como diva, como musa inspiradora a várias tradições dinâmicas que surgem através das manipulações dos samples no funk.

A posição que Bibi toma perante a sua produção artística é a de objeto, não de autora. Bibi faz parte do funk, é usada por ele, e não o contrário. Essa diferença, crucial ao entendimento do porquê o funk é um gênero popular, mas que ocupa uma posição diametralmente oposta ao pop, é o que torna Bibi a anti-Anitta. Sua presença na faixa é algo mais subentendido, subjetivo, apenas uma porção dela. A diva admite a repetição dos mesmos clipes vocais, admite uma falta de originalidade, uma plasticidade ímpar; é a forma funk de afirmar a própria identidade.

A sua imagem, a ideia de quem, ou melhor, o que é Bibi Babydoll é tão relativa e móvel quanto sua presença nas faixas. Ela é sempre o foco das capas das suas centenas de singles — outra característica importante no funk: a explosiva quantidade de material. As músicas, quase sempre, têm o seu nome. Porém, existe uma incerteza na estética sob a qual a imagem de Bibi será retratada no próximo single que torna a essência do que é a Bibi impossível de se prever. Ela é uma cyberpunkgoth2000sbimbokitschultraphonkbdsmhyperpopbrasilicon tudo ao mesmo tempo, e pode ser o que mais quiser que ninguém vai julgar ou achar “incoerente”; sua própria existência é incoerente.

“Mas, se for assim, o que torna a Bibi diferente das outras MCs, funkeiras e tal?” E essa é a parte mais bonita: nada. Quer dizer, nada além do tamanho de sua fama. Os funkeiros usam de seu talento e da força de sua imagem não para dominar — como as divas pop fazem — e sim para deixar um legado de infinitas possibilidades aos produtores de funk do presente e do futuro. Bibi não é uma “gigante do mercado”, e sim só mais uma das vozes que vão ser repensadas, destroçadas, repetidas e restituídas nas mentes e nas mesas de som dos DJs.

O que mais desejo na música popular é isso, uma rede infinita de reminiscência de imagens abstratas. Uma hiperficação do que já passou, repetindo incessantemente até que tudo se exploda. As Anittas precisam ser extintas da música brasileira o mais rápido possível para que todas as Bibi Babydolls se ergam em meio à criatividade sem fim do funk. A cada dia que passa, estamos mais longe de nos ater aos limites dos meios de produção e reprodução da música popular. A cada dia que passa, o funk se espalha por debaixo de todos os alicerces de nossa música, e, aos poucos, da música global. Não existe outra forma de replicar ou de integrar o funk senão esta.

Ai como me deixa feliz, como fico feliz sabendo que a anarquia musical é o futuro do Brasil.
Sophi

Estudante, 18 anos. Encontrou no Aquele Tuim uma casa para publicar suas resenhas, especiais e críticas sobre as mais variadas formas de música. Faz parte das curadorias de Experimental, Eletrônica, Rap e Hip Hop.

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