Crítica | Gambiarra Chic, Pt. 1

★★★★☆
4/5

Em 2021, com Dotadas, as Irmãs de Pau fizeram seu nome como uma dupla única no cenário do funk. Explorando a determinação de identidade ao máximo, a ousadia, frontalidade e potência que as travestis funkeiras mais carismáticas do mundo demonstraram em seu disco de estreia foi algo de dar inveja. “Picumã y Próteses” e “Pedagorgia” são grandes hits até hoje. O álbum, porém, sofreu um pouco com uma certa inconsistência na qualidade das faixas, além de não ter explorado seus temas e variedade sonoras da melhor forma — o que não tem problema, era só o primeiro disco delas.

Em Gambiarra Chic, Pt. 1, porém, tudo que poderia ter sido aperfeiçoado no debut não somente se concretizou como foi superado. O EP é um display inacreditavelmente divertido da sexualidade intensa, sem limites e completamente fora da heteronormatividade de duas travestis. Tanto Vita quanto Isma elevam a ousadia e frontalidade do primeiro disco à mil com uma produção de funk, drill e ballroom destruidora de tímpanos. Eu não faço ideia de como “MEGATRON” e “FOOD FOOD” conseguem ser tão altas.

Para além da produção de possibilidades ilimitadas, as performances das duas são tão diversas quanto. Momentos como as miadas violentas de Isma — estou louca para ver todo esse carisma em outras faixas de funk — em “BRASILEIRINHAS CUNTY” aparecem em todo o álbum: a dupla usa sua capacidade vocal de maneiras tanto divertidas quanto inéditas para criar um ambiente de caos, dinamismo e imprevisibilidade. Você nunca sabe quando as duas vão começar a repetir e gritar palavras que muitas vezes nada significam, apenas estão lá pois torna a faixa divertida. Algumas letras do projeto são hilárias, mas com certeza a minha favorita é : “No peito, carrego o mais importante / Minha família e meu silicone”

O maior brilho do projeto não é, todavia, a sua diversão. Esse mérito vai à forma como as Irmãs de Pau se apropriam de gêneros e se inserem em espaços que não as querem — tanto o hip hop quanto o funk são ambientes, no geral, extremamente transfóbicos —, a qual que só pode ser definida como inspiradora. A maioria das letras do álbum jogam na sua cara: eu sou travesti e é assim que eu vivo. São grandes versos exaltando os corpos de travas — e, por consequência, os de outras identidades trans — em relações sexuais não normativas, viscerais, orgânicas e, simultaneamente, artificiais — todas nós amamos nossos silicones (quando eu tiver um). Como nenhum outro projeto esse ano, Gambiarra Chic, Pt. 1 expressa as identidades, culturas e corpos das travestis de forma exímia.

Como uma membra da letrinha T, ouvi-las me dá uma felicidade imensa; algo dentro de mim desperta, uma vontade inexplicável de gritar na cara de todos: eu quero viver, porra! Saber que esses tipos de vivência são contados de forma tão inescrupulosa e verdadeira me enche não só de orgulho, mas de alegria, esperança e pertencimento. Todas nós merecemos celebrar nossos corpos, e ninguém pode pôr um limite em como deveríamos fazer isso. Essa ideia é o espírito da arte de Isma e Vita, que se definem, com completa razão, como pesquisadoras das estéticas sonoras e visuais da putaria brasileira.

Em suma, as Irmãs de Pau sempre, sem um pingo de arrependimento ou falta de coragem e com o máximo de energia permitido, vão atrás de ocupar lugares que não as querem. Elas se definem por meio da determinação, da garra e, especialmente, pelo amor à vida — e ao sexo, por que não? No funk, no rap e na eletrônica, ambas dão o máximo de si para firmarem sua identidade dentro desses gêneros como travestis. Gambiarra Chic, Pt. 1 é, até agora — pois tenho certeza que vão superar essa marca —, tudo de melhor na música do duo, além de ter algumas das melhores músicas do ano: “FOOD FOOD”, “CUSSY” e “BRASILEIRINHAS CUNTY”. É o futuro da cultura ballroom no Brasil!

Selo: Tratore
Formato: EP
Gênero: Funk / Mandelão, Ballroom, Drill
Sophi

Estudante, 18 anos. Encontrou no Aquele Tuim uma casa para publicar suas resenhas, especiais e críticas sobre as mais variadas formas de música. Faz parte das curadorias de Experimental, Eletrônica, Rap e Hip Hop.

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