Clássicos do Aquele Tuim | Mummy and Daddy (1998)


★★★★★
5/5

Qual foi o álbum mais assustador que você já escutou? Se provavelmente já se deparou com algum de black metal ou death industrial, pensou que seria um desses. Nesses gêneros, é muito comum a criação de uma atmosfera assustadora por meio de guitarras ou dissonâncias eletrônicas, batidas secas e performances vocais incomuns, que são realmente capazes de causar um desconforto grande.

Em muitos aspectos, o power electronics se assemelha ao death industrial, inclusive nessa possibilidade de perturbar; contudo, provavelmente a pior experiência possível de se ter com um álbum é com Mummy and Daddy. O que diferencia os dois gêneros é a chave para entender isso: a frontalidade. O death industrial já é bastante frontal na maioria das vezes, mas ainda se tem a preocupação com a metáfora, a poética, enquanto Mummy and Daddy é um exemplo de álbum que de forma alguma quer ser poético; ele traz tudo como um soco no estômago. Na época de lançamento, nem os membros imaginavam que esse disco faria qualquer sucesso, e Bennett chegou a dizer que era o álbum mais perturbador que já havia feito e que sentia medo dele.

Os instrumentais, inspirados pelo harsh noise na maioria das vezes já enunciam a sua agressividade, mas é só quando William Bennett começa a sussurrar as letras em “Philosophy of the Wife-Beater” que as coisas ficam mais intensas. As temáticas das letras são, para dizer o mínimo, horríveis. Todas de alguma forma se relacionam com abuso doméstico, e essa — já pelo nome — é possível perceber que não é diferente da proposta. Em resumo: não é o tipo de álbum para se ouvir quando não se tem coragem, ou estômago para esse tipo de assunto.

É importante salientar que isso é extremamente proposital. Não há moralidade por trás, a não ser te deixar absolutamente desconfortável e te fazer sentir repulsa, nojo, infelicidade, ou te tornar autodestrutivo. Isso tem muito a ver com o trabalho não só do Whitehouse como um todo, mas com a própria ideia do power electronics e outras pessoas envolvidas no álbum, como Peter Sotos e o produtor Steve Albini (que aqui apenas ajudou a gravar o álbum, mas que foi grande influência e colaborador do grupo).

“A cunt like you” é um excelente exemplo de como isso opera. É uma música que é fácil de interpretar como um pai humilhando e xingando ao extremo sua filha; nós como ouvintes ficamos na posição de “filha”. O uso do noise como instrumental já é desconfortável por si só, apocalíptico, um desespero sem saída, o que leva a outro ponto do álbum: não é sobre identificação, apenas sobre a realidade.

Em muitos aspectos, esse álbum é duramente criticado, e o principal deles sendo o modo como estão explícitas as letras, e principalmente pela última faixa “Private”, que é uma colagem de entrevistas e depoimentos de crianças que passaram por alguma forma de abuso doméstico (sexual ou físico). Falar sobre a realidade, sendo ela passível dessa realidade é explicitar esses casos, mesmo que da forma mais desconfortável possível, mesmo que talvez o melhor fosse ignorar a existência.

Nesse sentido, me lembra muito “Ice and Fire”, romance da feminista radical Andrea Dworkin (uma escritora e teórica de quem Peter Sotos é muito admirador). Entre os romances dela, esse é considerado o mais explícito e o que mais dialoga com suas colocações a respeito da pornografia. Ao ler o livro, fica claro que para Dworkin não bastava falar que o problema — a misoginia, o estupro, a violencia contra a mulher — existe sem mostrar o problema, sem deixar claro tudo que se vê, se sente e se passa diante dele. O que o Whitehouse (e Peter Sotos em “Private”) faz aqui é um trabalho semelhante, é uma denúncia explícita, e para torná-la política e radical eles explicitam cada uma dessas questões e te colocam no lugar mais desconfortável possível, é um dos jeitos mais absurdos e arriscados de se fazer música.

O que esse disco deixa claro é que: não somente essa não é uma experiência para todos, mas é uma experiência que facilmente pode ser interpretada como algo que não deve ser ouvida, não deve ser gostada e não deve ser incentivada. E, provavelmente, está correto. Uma obra-prima incomum, que vai te afastar dela e não te trazer para perto, que se torna cada vez mais impossível de escutar quanto mais você presta atenção.

Selo: Susan Lawly
Formato: LP
Gênero: Experimental / Power Electronics, Colagem Sonora

Tiago Araujo

Graduando em História. Gosto de música, cinema, filosofia e tudo que está no meio. Sou editor da Aquele Tuim e faço parte das curadorias Experimental, Eletrônica, Funk e Jazz.

Postagem Anterior Próxima Postagem