Conheça o gênero que redefiniu a maneira de pensar samples, pressionando a indústria e as leis de direitos autorais.
Instrumentos musicais produzem sons. Compositores produzem música. Instrumentos musicais reproduzem música. Gravadores de fita, rádios, toca-discos, etc., reproduzem som. Um dispositivo como uma caixinha de música produz som e reproduz música. Um fonógrafo nas mãos de um artista de hip hop/scratch que toca um disco como uma washboard eletrônica, com uma agulha fonográfica como um palheta, produz sons que são únicos e não são reproduzidos — o toca-discos se torna um instrumento musical. Um sampler, em essência um instrumento de gravação e transformação, é simultaneamente um dispositivo de documentação e um dispositivo criativo, efetivamente reduzindo uma distinção manifestada pelos direitos autorais.
É assim que John Oswald começa seu ensaio Plunderphonics, or Audio Piracy as a Compositional Prerogative”. O texto acima é, indiscutivelmente, o mais importante para compreender o que é plunderphonics. Ocasionalmente referido em português como “roubofonia”, o gênero é creditado como uma criação do compositor John Oswald, nos fim dos anos 80. É um termo que, desde então, é jogado a torto e a direito para falar sobre qualquer música baseada em samples, mas que exprime um significado muito mais específico que isso.
É uma abordagem dos samples que contém uma filosofia em mente, um objetivo, uma missão. É ver a música como instrumento de reprodutibilidade, popularidade e como mercado, e, simultaneamente, satirizar e exaltar isso. É uma busca pela quebra do limite entre privado e público, o que é de alguém — posse, conflito — e o que é de ninguém — conexão. Em alguns sentidos, é uma interpretação radical e ácida da pop art de Andy Warhol aplicada à música.Para entender o plunderphonics, precisamos não só compreender as linhas de raciocínio de Oswald, mas também analisar tudo que o precede no que se refere a gravação musical — a história de como a música passou de ser apresentada para ser reproduzida — e o contexto de sua epifania.
Como o Plunderphonics surgiu?
Há mais de 130 anos atrás, gravações musicais passaram a ser comercializadas em certos círculos. Eram instrumentos rudimentares, chamados cilindros fonográficos, com pouquíssima capacidade de armazenamento sonora (aproximadamente 2 minutos) e qualidade muito inferior à realidade… mas era genial. Um tubo, fubento, capenga, podia soar como um pianista tocando uma valsa, ou uma pessoa contando piadas. Um tubo estava assumindo a voz de uma pessoa. Fascinante.
Será que um dia colecionarão esses cilindros como colecionam vinis? Duvido, são feios demais. Coitados. |
Primeiro, a música de toca-discos, que alterava levemente a reprodução de discos de vinil, depois a eletroacústica, música de fita, musique concrète, colagem sonora… etc. Todas elas trabalhavam com o meio termo entre gravação e reprodução, explorando caminhos e significados que poderiam ser extraídos disso. Contudo, a maioria delas não estava interessada em um fator crucial à gravação de música: comercialização. Claro, existem exceções — em especial, aquelas derivadas de tudo que “Revolution 9”, dos Beatles, representou —, mas o primeiro a sistematizar esse fator como base da criação musical foi John Oswald.
Essa combinação de colagem sonora com uma abordagem decididamente afrontosa foi o que deu à luz a maior parte do plunderphonics, mas não toda. O resto veio diretamente de dois gêneros dos anos 80: o hip hop e a música industrial. O primeiro desafiava os direitos autorais ao usar samples de clássicos do funk americano e outros registros populares, distorcendo-os entre riscos e scratches. Em algumas tradições do segundo, a influência da colagem de sons encontrou o amor pela música pop — em especial o synthpop —, gerando um micro-estilo análogo ao plunderphonics, mas mais passivamente combativo.
Após sua criação, desenvolvimento e propagação, o plunderphonics adotou um filho e deu à luz a outro. O adotado foi o mashup, que já existia, mas que, por definição, tem todas as suas bases na lógica do plunderphonics de ironizar o reconhecível, só que mais relacionada a um entretenimento simples. O filho sanguíneo foi a cultura do YouTube poop, que transforma vídeos virais da internet em música por meio de um caos completo de samples e colagens visuais.
Deste ponto em diante, inúmeros gêneros foram influenciados por essa linhagem. Estes incluem o vaporwave (especialmente os eccojams de 2009-2010), o nightcore, o dariacore, o epic collage e o resgate contemporâneo da música de toca-discos. Até certo ponto, a linhagem também influenciou gêneros que vêm de outras origens, a exemplo do utopian virtual e dos filhos do sampledelia — originado do hip hop psicodélico dos anos 90 —, que são o hypnagogic pop e o pós-noise/nu new age.
Meu exemplo preferido de pós-nightcore. É bem bobo; bem plunderphonics.
Como o Plunderphonics soa?
Impossível definir. Plunderphonics é um método de composição, uma forma de ver e fazer música, não uma lista de influências, características marcantes e modismos. Por samplear qualquer coisa que o autor julgue reconhecível e de qualquer forma possível — deixar quase inalterado ou quase irreconhecível —, não tem boi para se dar nomes. O que é possível descrever, adjetivar, é justamente a plunderphonia; a maneira de analisar a música.
As leis de direitos autorais devem ser esquartejadas. Precisamos ver a sua pele ser descascada, pouco a pouco, até que os seus músculos pulsantes fiquem ardendo em sal. Não há diferença alguma em produzir e reproduzir música, ambas são apenas modos de criar interações, fruir sons. Quando se impõe um limite onde alguém pode exercer sua criatividade, quando se diz que uma certa criação é de alguém, um pedaço da música morre. O que será patenteado em seguida, progressões de acordes? Timbres? Frequências? Alguns desses nem são hipóteses. É ridículo, imbecil, ignóbil, aquela lista de xingamentos ao Bolsonaro, etc.
Vida longa ao plágio, vida longa a música livre, sem imposições ou regras. O plunderphonics morde artistas grandes, aqueles com trabalhos importantes para a vida de milhões, presos atrás de grades legais. Ele os odeia e ama ao mesmo tempo; ódio por serem mesquinhos, amor por terem tanto poder, serem capazes de atingir todos aqueles ouvidos. O meio termo é a sátira: ironizar a música popular, de qualquer forma que seja, para caçoar e louvar dela.
Resumindo: manipulações de sample populares, que distorcem o reconhecível, são plunderphonics. Quando não se é feito precisamente isso, não é plunderphonics. Simples, não?
Indicações
O hino do plunderphonics. Essa restituição de “Bad”, de Michael Jackson, é impossível de acreditar como algo real. Na época, a sua confecção empurrou os samplers digitais ao seu limite físico. Febril, surrealista, insubstituível.
Formato: Single
Ano: 1989
Ano: 1989
John Oswald
Normalmente, não faria sentido colocar o mesmo artista duas vezes nessa seção, mas seria ultrajante não incluir este álbum. Plexure é a teoria de Oswald em seu máximo primor, em total estado de desorientação e destruição. A peça que melhor define o gênero, uma experiência indispensável a qualquer ouvinte de música.
Formato: LP
Ano: 1993
Ano: 1993
Dispepsi
Negativland
Embora tenham feito trabalhos semelhantes ao que seria então chamado de plunderphonics desde 1980, Negativland só atingiu seu pico em 1997, com Dispepsi. O álbum é, quiçá, a peça mais irônica do plunderphonics, sendo curiosamente engraçado à medida que impressiona com seus flips de sample totalmente fora da realidade. Outro essencial do gênero.
Formato: LP
Ano: 1997
Wild Why
Wobbly
Hip hop, plunderphonics, hip hop novamente, Wild Why é a volta completa do gênero, mas é também uma evolução, atualizado com novas tecnologias computadorizadas e novas referências da cultura pop. Um pouco mais sutil que o normal, é uma jóia intocável, retroalimentada com tudo aquilo que tornou o gênero especial.
Formato: LP
Ano: 2002
Formato: LP
Ano: 2002
An empty bliss beyond this World
The Caretaker
An empty bliss beyond this World troca a ironia e a complexidade pela melancolia e a simplicidade numa ode ao desespero mundano. O foco ainda é a distorção de samples, entre a gravação e o ouvinte, mas de uma maneira evidentemente delicada, influenciada pela música ambiente. Estranhamente familiar, depressivamente tocante, é o álbum que mudou o gênero para sempre.
Formato: LP
Ano: 2011