★★★★☆
4/5
4/5
Fazer crítica de música (e talvez de arte em geral) é sempre um processo curioso que, se feito de forma honesta, sempre fala mais sobre quem escreve do que sobre a obra analisada. Entender esse preâmbulo é essencial para que o diálogo proposto nessa crítica seja plenamente entendido, e, por esta razão, é com ele que a gente abre.
Diamantes, Lágrimas e Rostos para Esquecer (DLRE) é o quinto, e mais novo projeto do já consagrado na cena do rap nacional Abebe Bikila (BK). Essa oração contém os elementos essenciais para a discussão que esse texto pretende, o segundo – em ordem de aparição, mas certamente o mais importante – se dá na escolha de apresentar BK pelo seu nome de batismo, essa escolha não é apenas nossa, é do artista também. Abebe já falou em algumas entrevistas sobre como este é o primeiro projeto de uma série que pretende substituir gradativamente seu nome artístico pelo seu nome de batismo.
Não é difícil imaginar que essa transição tem relação com um processo de se colocar mais em sua obra, de se ver mais diretamente e não sob a égide de uma persona, não é loucura supor que a gente tá diante do início de um momento em que o protagonismo se volta para Bikila e não para BK. Esse processo vai além da mudança de nome; durante o ciclo promocional do álbum, BK lançou um curta-metragem, gravado na Etiópia (terra de origem do seu nome) ou ainda o código de conduta do bando e todo o material de design construído até então.
Isso tudo gera, em teoria, um álbum “coeso”, mas talvez não seja bem esse o ponto. O que de fato interessa (e o elemento principal entre os dois pontos levantados no segundo parágrafo) é como esses elementos formariam o conceito do álbum, essa ideia tão valorizada na indústria e que seria capaz de, por si só, dar credibilidade, imputar sentido, forma, corpo a… qualquer coisa?
Talvez o caminho não seja bem esse. “Ninguém come conceito” ou nesse caso “ninguém ouve conceito”, e calma, a gente sabe que tá escrevendo para um site que se propõe a dar visibilidade e dialogar com música experimental, com sonoridades conceituais etc., essa não é uma crítica a ideia nenhuma dessas coisas – não faria sentido ser. A questão aqui é que se come comida, se assiste filme, se ouve música, independe se ela tem um conceito articulado e amarrado por trás, o que me interessa é o que está na minha frente e não todas as ideias que estavam na mente do artista na hora da concepção (ou que foram inventadas depois para justificar um trabalho).
E esse talvez seja o ponto central do novo álbum do BK. O Na Pauta conhece o conceito, a gente assistiu o filme, as entrevistas, acompanhamos parte da equipe que produziu a identidade visual do álbum; o conceito nos era claro. A pergunta é se esse conceito é visto plenamente em DLRE.
Não nos entendam mal, ao ouvir o álbum vários dos conceitos ficam claros. Esse é um álbum claramente pessoal, BK usa sample como elemento narrativo (além de harmônico) como se ele continuasse aquela história das músicas que ele cresceu ouvindo. O rapper faz referências a questões que ele levantou em álbuns anteriores, como a faixa “Quadros”, do álbum Castelos & Ruínas, de 2016, em que diz:
“Viver pouco como um rei ou muito como um Zé? Essa eu ainda não sei responder”
Já em “Só Eu Sei”, ele finalmente enuncia:
“Viver muito como um rei / Essa é minha resposta”
Lembra do primeiro ponto do segundo parágrafo? Ele é destacado aqui pelo fato de que o artista, sabendo do seu tamanho na cena, dá espaço para que outra pessoa abra seu mais novo álbum na certeza de saber que quando ele chegar sua presença será inconfundível ou mesmo que não precisa se arrepender do que já aconteceu, as coisas estão estáveis e o objetivo agora é olhar para o futuro.
Todos esses elementos constroem o conceito do álbum e estão em algumas faixas, mas, ao ouvir ouvi-lo, sem todo o contexto, parecem na maior parte do tempo um amontoado de boas ideias que a gente já viu antes.
E essa é uma questão essencial aqui, esse trabalho não tem questões isoladas abaixo de outros álbuns, ou seja, Abebe não tá com a caneta mais fraca, a produção é brilhante (em sentidos múltiplos), as interpretações são sempre interessantes. Além disso, esse álbum tem pontos interessantes e que a gente ainda não tinha visto no BK (o uso de samples como elemento narrativo e harmônico, mas também brincadeiras com a produção). Ou seja, nada aqui é isoladamente pior e por isso funciona, especialmente na primeira metade do álbum.
No entanto, o conceito condena parte da experiência, não é difícil garantir que consumir o filme, ver as acepções de design fazem esse álbum se amarrar e ganhar proporções e principalmente nuances muito mais interessantes, que infelizmente não aparecem na música pela música. Nesse sentido, vale dar o crédito ao Bikila que esse é um álbum capaz de despertar a curiosidade, seja para descobrir de quem são os vocais desses samples que são profundamente protagonistas, seja pela plataforma do BK ou ainda por parte desses elementos estarem em diferentes mídias. Mas ainda assim, o álbum deveria ser capaz de falar apenas por si.
Dito tudo isso, talvez você, leitor, esteja se perguntando como essa nota faz sentido. A resposta já foi desenhada lá em cima; o Na Pauta consumiu todos esses conteúdos, a gente viu o filme um dia antes de lançar o álbum, vimos a entrevista, enfim, chegamos para ouvir o álbum com esse conceito já estabelecido. É claro que, como críticos, confrontamos a obra apesar de seu conteúdo externo, mas seria desonesto julgá-la fingindo que não vimos tudo isso.
Não é difícil classificar este álbum como um 3/5 ou mesmo um 2/5, no entanto, seria fingir ser erudito e desapegado (quase como os positivistas queriam) fingir que não há relacionamentos que ocorram além da música pela música. Para se apegar a referência da comida, a da minha vó pode não ser a melhor, mas eu sei a história dela o suficiente para comprar tudo que tá na minha frente.
Selo: Gigantes
Formato: LP
Gênero: Hip Hop / Rap consciente