Crítica | Um Rombo No Peito e Um “S” Nas Costas


★★★★☆
4/5

Lipe, em seu novo trabalho, mergulha ainda mais profundamente em sua simplicidade — marca registrada de seu som. Seu álbum anterior, Do Contra (2024), já nos apresentou um músico que, mesmo na modéstia, consegue explorar um leque de variações sonoras, sem abandonar a sutileza e a delicadeza em cada faixa.

Em Um Rombo No Peito e Um “S” Nas Costas, ele desmonta sua própria sonoridade e se rende à essência minimalista, deixando de lado a riqueza do som em prol de uma abordagem menos expansiva e mais com instrumentos escolhidos a dedo. Embora haja menos variedade em comparação a seus trabalhos anteriores, Lipe opta por colocar o instrumental no centro do palco, dando espaço e tempo para que cada nota construa e prepare o cenário para suas palavras. É como se os sons transcendessem sua função, transformando-se em paisagens completas, cheias de cores, formas e até aromas.

Lipe pode não parecer ambicioso à primeira vista, ou talvez seu álbum soe pretensioso para alguns, mas a verdade é oposta: mesmo na simplicidade, ele revela ideias ousadas. Em “Violenta”, por exemplo, ele entra em conflito com seus próprios pensamentos e desejos. O mais intrigante é que os diálogos internos não só se conectam, dando a impressão de monólogos caóticos, como também se fossem conflitos íntimos vocalizados em alto e bom som.

“Carta Ao Coronel” é um ponto fora da curva. A canção é entoada de maneira quase recitativa, semelhante à leitura de uma carta — o que faz todo sentido, dado o título. Porém, a maior diferença reside no conteúdo lírico: parece um relato pessoal sobre o coronelismo, prática política marcante na República Velha brasileira. Esse raciocínio ganha força ao lembrarmos que o artista é baiano — o coronelismo, embora presente em todo o país, teve raízes especialmente fortes no interior nordestino. Canções com teor político não são novidade em seu repertório; o álbum anterior traz “Ferro Brasil”, faixa que mescla desigualdade social com situações cotidianas.

Independentemente da narrativa por trás da faixa, “Carta Ao Coronel” se destaca pela construção de seus versos, sempre pautados em relações de causa e consequência. As sonoridades das letras se entrelaçam, enquanto os sons crus e a mixagem inteligente criam uma atmosfera visceral.

Já “Lua” segue outro caminho. A faixa tem um tom intimista, colocando a voz do artista como protagonista. Falando nisso, a vocalização de Lipe é um dos pilares deste trabalho — assim como foi no disco anterior. Ele explora sua voz sem sair de sua zona de conforto: a calma que emana de sua entonação dialoga perfeitamente com as funções estilísticas que o disco assume. A falha rasgada em “Uma Mulher Vestida de Sol” e as mudanças de timbre ao longo das faixas mostram um artista que se desdobra para reinventar sua expressão vocal, adaptando-a à progressão de cada música.

Além disso, sua voz é visceral. Ela não apenas cumpre o papel de transmitir a mensagem, mas também a potencializa — mérito de alguém que entende e confia em suas capacidades, aliado a um trabalho minucioso na escolha de instrumentos que complementam sua entrega. Não é à toa que Lipe mesmo tocou e masterizou as faixas, imprimindo um controle artístico total.

Em suas palavras, via Instagram: “Um álbum tão caseiro quanto o anterior. É... dediquei um pouco menos de tempo, mas acho que coloquei um pouco mais de dedicação no disco.” E sim, essa dedicação é quase palpável. Mesmo com menos tempo investido, Lipe conseguiu entregar um trabalho admirável, prova de que, quando a autenticidade guia o processo, a arte flui com naturalidade e força.

Selo: Independente
Formato: LP
Gênero: Música Brasileira

Antonio Rivers

Me chamo Antonio Rivers, graduando em História, amazonense nascido em 2006. Faço parte do Aquele Tuim, nas curadorias de Experimental, Eletrônica, R&B e Soul.

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