Crítica | A City Drowned in God's Black Tears


★★★★☆
4/5

Os afro-americanos têm uma gíria chamada “stank face” que é aquela careta que aparece quando uma passagem de uma música é quase nojenta (naquele sentido bom de “ughhh”, de arrepiar). O que o estadunidense Brian Ennals e o tanzaniano Tariq Ravelomanana, de nome artístico Infinity Knives, fazem aqui é digno de umas 3 “stank faces” por faixa; e chutando baixo.

Começar a primeira faixa com “Netanyahu is the new Hitler” em menos de 20 segundos é absurdo, e ainda assim, prepara o terreno para o tom dos restantes trinta minutos do álbum. Colocando de forma didática e lúdica: de todos os detentores de força política e econômica da terra do Tio Sam e de uma boa parte de outras terras esperando sua vez na mesa, praticamente ninguém sai incólume. A City Drowned in God's Black Tears é um daqueles trabalhos que fariam um empresário da Sony Music chorar de rir e carimbar bem grande “JAMAIS LANÇAR”, e essa é sua força principal. Até porque, se pudesse, a dupla carimbaria o tal empresário com chumbo. É tal o nível de revolta.

É claro, revolta pouca é besteira, e todo mundo tem uma revolta com alguma coisinha, pra bem ou mal. Se chove hoje e eu estou usando chinelo e sem guarda-chuva minha revolta é particularmente visível, e o hip hop é histórica e notoriamente pautado em revolta e em inconformidade. A indústria tornou meio que cativa a noção de revolta do rap e de outros protestos negros dos Estados Unidos, e não à toa Nina Simone cantava “Mississippi Goddam” e “Strange Fruit” em frente a uma plateia cor-de-cal; a noção não é de empatia, muito menos de gentileza, é de minstrel, de zoológico. A branquitude estadunidense vê esses gritos como manifestações talvez divertidas, talvez tristes, mas só. Jamais uma agonia, um urro; no máximo uma reclamaçãozinha.

Em tempo Infinity Knives fala da IDF, do sionismo, do FBI e da CIA, brinca com cúmbia e com coros, coloca um violão, faz-se ouvir a própria voz contando tempos e o metrônomo de fundo, ele desesperadamente quer se dizer humano, ser, coisa e objeto, em seus lados positivos e negativos, ainda que deixe as mazelas claríssimas pra qualquer um disposto a escutar. Quando um coro masculino recita “I should’ve drowned them, one by one” na faixa-título, o sentimento é de assombração, de falta. Quando “Sometimes you throw the perfect punch, and that cat still duck” aparece em “Sometimes, Papi Chulo” é de um humor terrível. Terrível mesmo.

Essa semana (27/03) surgiu uma mini-controvérsia de um probleminha da garotada Geração-Z-dezenove-anos-caucasiano-com-tempo-livre (esse é todo um demográfico e uma parte considerável da população, inclusive) de fazer graça e troça na plateia de shows de rap underground e alternativo; é ir vestido de bocó com chapéu de hélice ouvir o MC Ride rimando sobre suicídio no show do Death Grips, é gravar apresentação com câmera de Nintendo DS, é jogar xadrez na grade do MIKE enquanto ele fala da mãe falecida.

É pros outros compatriotas cor-de-sulfite olharem e dar risada, achar bobinho, chamar atenção, tirar o foco da arte (coincidentemente… preta) e colocar em si. Jamais aconteceria num show do Infinity Knives. Não porque eles são maiores ou mais dignos de atenção, não, é porque falar “Trump is a rapist, Biden is a nazi” afasta todo um núcleo de ouvintes, que coincide também com esse pessoal aí. Melhor ouvir, sei lá, o Killer Mike falando “Look at all the slave masters posing on your dollar” e no twitter ser milionário e coach. Talvez a hipocrisia vista bem.

No fim, a gritaria da dupla serve bem, mesmo que por vezes não grite, e a revolta encaixa perfeitamente, ainda que o objeto seja quem a pronuncia. Nenhuma revolta é maior que a que vem de si para si, e olha que as revoltas externas no álbum são bem pungentes e querem chegar bem perto da autoconsciência. As vezes têm que falar, e perceba ali o circunflexo em têm; bom seria se esse ódio fosse generalizado, se pisar na cabeça de palestinos gerasse injúria e nojo em parcela maior, se drones sobrevoando crianças afegãs doessem como doi quando a Amazon dos EUA demora um dia a mais pra entregar algo numa casa em San Francisco, se o xadrez no front gerasse cuspe e tapas, e não risadinhas. A City Drowned in God’s Black Tears tenta ao máximo sua tarefa de dizer e urgir a reflexão, e se é murro-em-ponta-de-faca, é porque as vistas são de aquário, não de mar. E de presenciar afogamento.

Compre: Bandcamp
Selo: Phantom Limb
Formato: LP
Gênero: Hip Hop

Pedro Piazza

22 anos. Ama todos os tipos de arte e em especial a música, que guarda um lugar essencial em sua vida, principalmente as mais barulhentas. Parte da curadoria de MPB e hip-hop no Aquele Tuim

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