★★★★☆
4/5
4/5
Essa publicação tem o dever moral de endossar artistas internacionais que tiram um tempinho na agenda para vir tocar no Brasil. Ainda mais quando se sai de Tóquio num avião que te obriga a ouvir bebê chorando por 24h até chegar em São Paulo pra tocar numa Audio da vida e depois voltar. O Kamasi Washington fez isso uns anos atrás e a gente até considerou dar nota alta pro último trabalho dele, mas “empatia sem limite é autodestruição” blá-blá-blá (e o voo de Los Angeles é consideravelmente mais curto). Apesar de Ichiko Aoba [青葉市子] fazer uma linha voz & violão & piano que reina nos pequenos estúdios paulistas e nas antigas boîtes cariocas, ela tem algo que muito falta por aí: uma raríssima capacidade de harmonização e desafinação consigo mesma.
Nesse quesito Aoba tem muito do jazz tardio (lê-se: anos 70) – ela articula muito bem suas frases dentro de um acompanhamento – e a melodia vem de sua própria rítmica vocal. Comparando: a Joni Mitchell tem um álbum de 1979 em que ela dá letra ao jazz de Charles Mingus, tipicamente instrumental (como são os pós-bop americanos) e portanto faz uma articulação exatamente como a melodia original, mas com sua voz. Ichiko faz uma linha parecida, mas com os instrumentos de fundo reduzidos ao mínimo, já que sua voz já é suficiente na criação de ambientes sonoros.
Luminescent Creatures rima consigo mesmo, e sob uma ótica específica, é bem divertido de ver a voz da japonesa entrando em desarmonia com outra frase sua, com o piano, com o violão e consigo mesma de novo (e com o piano, com o violão… vamos indo até ela dizer chega), ela estica ao máximo as coisas nessa repetiçãozinha que parece trivial mas que gera um efeito bem cheio de camadas, cada uma com um propósito específico dentro da música.
Ela frequentemente cria dissonâncias na melodia, aplica sons de um quase (QUASE! Não sejam tecnicistas) Field Recordings, passarinhos, sua própria respiração, o eco do piano na sala, o som dos pedais sob os pés. Tem alguma flauta, tem a voz afinadíssima, quando ela quer, é claro. Tem cores, têm sangue pulsando. É abstrato, mas é o que É, ela diz e conta e profere e cada um desses verbos têm uma implicação diferente em seu som.
As faixas são curtas, o álbum tem meia hora e-uns-poucos, o sentimento é semelhante ao cheiro do armário de vó que era meio naftalina, meio algodão, meio lustra-móveis, meio verniz, está aqui (aqui ó, no lobo temporal, ou aqui ó, no âmago da memória que existe além das células e dos processos químicos) mas é curto, é borrado, é algo… Algo. No tempo das coisas Ichiko Aoba é algo.
“2.24° 3′ 27.0″ N, 123° 47′ 7.5” que é nome de uma das faixas, e a coordenada geográfica de um farol na ilha mais ao sul do território japonês (alô curiosos: é Okinawa) diz muito sobre a conexão da artista com a própria terra (de chão mesmo) que cruelmente se separa entre várias na geografia da nação. Antigamente, Ichiko fazia suas faixas com nomes em kanji, agora já passa ao francês, ao inglês, ao alfabeto latino, como num esforço de “agrado a vocês, mas esqueço de mim”. Por isso, ela faz questão de sempre remeter ao solo, às árvores, à relva de onde nasceu e de onde deve morrer. É lindo. É triste. Como são as coisas do coração e da saudade. E vale as vinte e quatro horas de avião com o bebê chorando, se ela puder gritar ao mundo o que sente, mesmo que nem grite, sussurre.
Selo: hermine
Formato: LP
Gênero: Folk / Chamber Folk, Cantor-Compositor