Crítica | MAYHEM


★★★☆☆
3/5

Penso sempre em como é difícil construir uma crítica em torno de Lady Gaga, principalmente por ela ser… a Lady Gaga. Ainda mais quando, pessoalmente, ela fez parte do meu processo de autodescoberta e me levou a questionar quem eu sou — esse, para mim, é um dos principais valores da arte. Não há como negar que ela é a arte personificada e, nesse momento, é muito difícil equilibrar meu lado fã e meu lado crítico. No entanto, sempre tento fazer isso da melhor forma possível, principalmente quando é preciso reconhecer que, mesmo sendo um fã ávido de seu trabalho, MAYHEM facilmente não é um de seus melhores álbuns.

Sabemos que, desde o início, assim como em todos os álbuns que ela vem lançando, um mesmo discurso persiste: “este álbum é para os meus fãs”. E acredito que, de alguma forma, ela nos levou de volta à Gaga de The Fame, The Fame Monster e até mesmo Born This Way nos primeiros minutos. No entanto, à medida que o álbum avança, essa conexão foi se diluindo.

Diante disso, nós, que analisamos a música (produto) sob a ótica da crítica e de sua retórica, constantemente nos deparamos com a narrativa: “tudo é crítica, às vezes os artistas estão apenas fazendo música para a gente se divertir, nem tudo precisa ser um grande mousse”, devo ter esbarrado com esse discurso inúmeras vezes durante esses quatro anos que escrevo sobre música. Primeiro, vale dizer que essas duas coisas não se excluem. O que está em jogo aqui é como tudo isso é construído. Não se trata de apenas avaliar a complexidade ou profundidade de um trabalho, mas compreender a construção de tudo, como ela é feita e o impacto que ela pode gerar. Portanto, não há nada pior do que esse discurso que desconsidera o valor de uma obra em termos de execução e efeito. A crítica, nesse caso, é sobre entender o que está sendo feito, como está sendo feito e o impacto que isso tem — e não sobre impor um padrão de complexidade que nem sempre se aplica.

Enfim, agora pensando no álbum. Quando Lady Gaga nos apresentou os dois primeiros singles promocionais, foi possível perceber uma reconexão com o que ela representou no início de uma carreira. “Disease”, por exemplo, é uma faixa de electro-clash fascinante, que lida com temas de vício e dependência emocional. A cantora se posiciona como uma espécie de cura, mas esse tratamento está imerso em um tom de manipulação e autodestruição, refletindo seus próprios demônios internos. Dessa forma, a música se torna um conforto dela mesma com as sombras que a assombram.

Por outro lado, em “Abracadabra”, Gaga manipula a dicotomia da vida e morte por meio de sintetizadores e da fusão entre electro synth e french house. A canção constrói uma atmosfera de mistério, cujo ritmo envolve o ouvinte em uma dança de desejo e perigo, salvação e destruição. Contudo, nem todas as tentativas de experimentações — aqui não estou falando sobre música experimental — são bem-sucedidas. “Garden Of Eden” apresenta uma sonoridade electro cansativa e desorganizada, falhando em alcançar seu objetivo que, neste caso, se pressupõe pelo gênero abordado. Embora a música trate de escolhas impulsivas e da entrega aos prazeres proibidos, toda a sua execução é desbotada, letárgica, dando a sensação de que o que está sendo proposto logo se transforma em decadência e indulgência. A tensão entre o desejo e consequência permanece, mas de maneira superficial. Em contraste, “Vanish Into You” marca um dos pontos altos do álbum. A canção fala sobre a busca por uma conexão tão profunda com alguém que as fronteiras entre os dois desaparecem – é fascinante. Nela, a melancolia é combinada com desejo, e a faixa se destaca pela sua sutileza em meio a avanços instrumentais cada vez mais desanimados.

“Killah”, por sua vez, é uma tentativa de resgatar as características de David Bowie e Prince, mas acaba soando demasiadamente limitada. Dizer que a canção é inspirada neles diz o quão aquém ela está dessas referências. Embora a tentativa de criar um funk puro com uma linha de baixo minimalista e uma batida grooveante seja válida, a execução parece distante de uma verdadeira conexão com ambos artistas. As coisas, novamente, melhoram em “Zombieboy”, que acerta ao descrever uma conexão física e emocional, mas também confusa. A música, embora simples, é completamente memorável. Suas estruturas de acordes fáceis de lembrar e ganchos melódicos repetitivos são o que fazem dessa faixa uma das interessantes de todo o álbum.

No entanto, a partir de “How Bad Do U Want Me”, nota-se uma queda em todo esse embrulho de temas e sons genuinamente carismáticos em seus melhores momentos. Embora tenha sido comparada ao estilo de Taylor Swift, a música parece completamente deslocada dentro do contexto do trabalho aqui apresentado. A escolha de incluí-la é, de fato, controversa. Acaba, de certa forma, se somando a outras faixas que são facilmente descartáveis, como “Don’t Call Tonight”, uma peça angustiante, desiludida e manipulada, em que vemos Lady Gaga se esconder em um vocoder sintetizado, em sua pior configuração vocal. Por sorte, a organização da lista de músicas tem seus acertos, e “Shadow Of A Man” é um suspiro diante dessa sequência que está por vir. Aqui, destaco a voz impecável de Gaga, cantando com uma força que atravessa as camadas de espaço entre música e ouvinte.

E, se a balada “Die With A Smile”, parceria com Bruno Mars, parecia ser o grande problema do álbum, faixas como “The Beast” e “Blade Of Grass” rapidamente a tornam o menor dos males. Enquanto a primeira soa exaustiva, a segunda poderia ter sido cortada sem remorso. Justo quando parece que Gaga está prestes a alcançar seu auge, ela nos arrasta para a miséria com a tortura que são essas músicas. “The Beast” tenta soar grandiosa, mas se perde na repetição e na falta de energia. Já “Blade Of Grass” é uma tentativa sem vida de pop rock, um som no qual a cantora sabe que tem potencial, mas que aqui carece completamente de impacto.

MAYHEM parece mais um desfile de boas intenções disfarçadas de caos. Lady Gaga, que prometeu nos levar ao caos, decidiu, em vez disso, nos oferecer uma versão polida de um caos que não se incomodou em acontecer. Talvez o título seja uma metáfora para o drama interno da artista; a pergunta que fica é: onde estão as ferocidades, os excessos, os gritos de liberdade? No lugar disso, temos uma Gaga comportada, dizendo "olha, o caos está aqui, só que no volume baixo e com filtro de instagram". Em vez de rasgar o palco, Gaga se acomodou, fazendo o que já sabemos que pode, mas sem se atrever. A ironia? O maior MAYHEM neste álbum é o desconforto de tentar encaixar tanta promessa em um produto tão… domesticado.

Selo: Interscope
Formato: LP
Gênero: Pop

Brinatti

Cientista Social formado (antropólogo e sociólogo), mestrando em Antropologia Social, 27 anos. Editor, redator e repórter no Aquele Tuim, com participação nas curadorias de Funk e Pop.

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