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Antes que de fato tivesse estabelecido sua própria forma neste autointitulado de 2017, a venezuelana Arca havia testado os limites de seu som em duas obras que funcionam como registros acadêmicos de um estilo de produção que fala por si: os álbuns Xen (2014) e Mutant (2015). Em ambos, há o que ela viria a dar substância mais tarde — um processo lento de descobrir e encobrir o passado e o futuro numa constante pessoal e muito delicada de personalidade e criatividade.
Todos esses álbuns têm em comum o fato de soarem como instalações artísticas em que podemos interagir e tocar seus cachos de frutos cultivados de modo cientificamente aprimorado. Essa sensação se manifesta, principalmente, na forma como Arca usa seus vocais, que, embora não fossem inéditos naquela época, seguem uma cartilha mais acessível e direta, no sentido de serem construções de música pop — isso, em momentos de pura delicadeza como na sequência “Piel” e “Anoche”.
Já em “Saunter”, as texturas em microsons tornam esses mesmos vocais mais gélidos, distantes, como se Arca estivesse suplicando, e não cantando. A arquitetura sonora do álbum é certeira em transmitir essas mesmas impressões, mesmo quando não há vociferações — apenas o rastro do som, uma criação de ambientes com batidas que entram em estado de choque frontal, dosando os pingelos de som mais eletrônicos que Arca constrói a partir de técnicas e elementos próprios, por vezes impossíveis de serem caracterizados. Tudo isso dá ao material uma sequência de alto nível do que ela havia feito em Entrañas, o que se nota muito bem em “Reverie”, cujos disparos sintéticos, de sons metálicos (repelidos em “Castration”), soam descontroladamente ansiosos, ao lado dos vocais que repetem os tons de “Saunter”. Ou então nos literais chicotes de “Whip”, que também adentra um espaço de profundidade estética, demarcando as contorções típicas que ela emprega em suas composições.
Nos instantes mais acessíveis, como “Desafío”, Arca canta com uma força descomunal de firmar, sobretudo, sentimentos. Ainda que o álbum todo parta de um pressuposto de mudanças em sua vida — e isso pode ser visto mesmo pelo seu processo de transição — é essa busca por efetivar, formalmente, sua demonstração de humanidade (ou não) que faz com que essa música seja um ponto de colisão extremamente ilimitado de tensão e latência. Dor e desejo:
Tócame de primera vez
Mátame una y otra vez
Ámame y átame y dególlame
Búscame y penétrame y devórame
É uma faixa que declama uma sensibilidade única, de uma artista igualmente única. A esta altura de sua carreira, Arca havia produzido para Kanye West, FKA twigs e Björk. Não é estranho, portanto, que seu autointitulado viesse também com a intenção de ser um firmamento de sua linguagem, seu método e suas marcas. Acontece que ninguém estava preparado para o que ela queria dizer. Na verdade, nunca ninguém está. Por isso, a letra de “Desafío” constitui algo quase irreplicável, em todos os sentidos possíveis, e que resume muito bem esse álbum em sua completude de significados:
Hay un abismo dentro de mí.
Selo: XL
Formato: LP
Gênero: Eletrônica / Art Pop