★★★★☆
4/5
A atmosfera de E, álbum de estreia de Eliana Glass, é serpenteada por suas referências o tempo todo, longe, porém, de se limitar a elas – uma vez que seria impossível, já que são muitas. Esse fato, por si só, já demonstra o quão ricas são as bases da artista, e como ela trata tudo isso com uma naturalidade que consegue criar, sem grande esforço, uma forma muito própria de transmitir ideias. Sua voz é carregada de ternura, e se encaixa muito bem nesses tempos de Sé vacante e aniversário de Hilda Hilst – é a paixão sublinhada pelo viver, pela materialidade e o completo vazio do sentimento que se completa individualmente, aqui, em quem a ouve.
Talvez por isso E seja tão sensível e humano. Na reprise da faixa “Good Friends Call Me E”, que encerra o disco, os chocalhos melódicos jazzísticos (e um tanto formais, fáceis de serem reconhecidos inclusive) são deixados de lado, e o tom se reduz, sem marcar com precisão o momento em que a faixa se esvai, parecendo ocupar um espaço cujo eco ressoa livremente. É como numa gruta, em que os vocais de Eliana não delimitam, nem nos permitem prever, para onde irão apontar – ainda que se trate de uma faixa de certezas, de ciência, no sentido mais puro do conhecimento humano. É o ponto em que ela consegue transmutar, como ninguém, a ideia de relação, de amizade. É belo e se adequa perfeitamente em todo o espaço gerido pela artista ao longo do projeto.
Em “Human Dust”, as texturas quase ambíguas, que encaram um minimalismo ardente, se constrói com dedilhados dramáticos, num ritmo que vai crescendo aos poucos até atingir a sua efusão completa. É nesse instante que a relação de Eliana Glass com o piano é evidenciada, como o epicentro de seus estudos e da sua própria condição de criação. Ela cospe as palavras, declama seus versos e os espelha com uma vontade tocante de percorrer uma versão tranquila e rítmica do texto de 1969 da artista Agnes Denes, num quase épico murmurante de 7 minutos de duração. É o centro da busca de Eliana em conciliar o passado presente reunidos em torno de sua busca pelo agora – e o que ele significa para ela.
Há, por isso, um apontamento constante da artista para suas raízes no minimalismo e nas peças de improvisação livre, que ganham força sempre que ela resgata algo antigo – de seu acervo de estudos – e o atualiza. Mesmo empoeirado, soa cheio de classe, longe do óbvio. É o caso de “Dreams”, versão da faixa de 1971 de Annette Peacock, um dos pontos altos dessas incursões de Glass pelo passado, que também se repetem em “Sing Me Softly the Blues” e “Emahoy”.
O que sustenta esse cuidado de Eliana em fazer uma curadoria ativa do que apresentar aqui não é apenas o desejo de resumir-se, mas de mostrar como se construiu (a si mesma) a partir dessas referências. Isso revela uma humildade e uma honestidade com o objeto artístico que, de certo modo, são tocantes – e herméticas. É dessa força exibida por ela que, agora, percebo vir minha associação entre sua música e as palavras de Hilda Hilst.
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Selo: Shelter Press
Formato: LP
Gênero: Jazz / Vocal Jazz