Crítica | No futuro ainda somos baile: Ritmofagia


★★★★★
5/5

Em No futuro ainda somos baile: Ritmofagia, DJ Paranoia propõe um mergulho profundo e provocativo no que se poderia chamar de o coração mutante do funk experimental brasileiro. Como o próprio título sugere, trata-se de um disco que olha para frente sem abandonar as raízes do baile, posicionando a cultura do funk sob uma ótica que é tanto futurista quanto reverente às tradições rítmicas que a formaram. O termo "ritmofagia", cunhado pelo artista, opera como metáfora central — uma referência direta à antropofagia modernista, que aqui se traduz como devoração e recomposição dos ritmos em sua forma mais crua, quebrada e liberta.

Logo de início, o que se destaca é a forma como DJ Paranoia leva os estilos ritmada e bruxaria ao limite, desafiando a audição com estruturas assimétricas, beats que se recusam a se encaixar no conforto da repetição, e timbres que dialogam entre o sintético e o orgânico de modo quase psicodélico. Em faixas como “AQUECIMENTO SUBTERRANEO VEM DE BOK”, a percussão do ritmado domina: caixas, repiques e berimbaus criam uma base pulsante e tensa, enquanto o beat seco e minimalista busca espaço entre os sons, numa coreografia entre o preenchido e o vazio.

Paranoia não tem medo do silêncio, da disritmia, do erro aparente. Muito pelo contrário — ele os transforma em recursos estéticos. É assim que as acapellas dos MCs, que poderiam soar deslocadas nesse terreno instável, ganham novo protagonismo: são encaixadas em espaços de tempo que já não seguem a lógica tradicional da métrica musical. Em vez de encaixe, há embate. Em vez de simetria, há colagem e desconstrução.

Quando mergulha na bruxaria, como na faixa “TUIN RITMADO NINGUÉM ENTENDE NADA”, o som torna-se mais ácido, ruidoso, dissonante — uma estética marcada por agudos quase irritantes, em que o tuim, efeito sonoro derivado do lança-perfume, vira símbolo dessa psicodelia digital. A faixa soa como se o baile estivesse derretendo, em transe. Aqui, o corpo dança não só com o quadril, mas com a percepção de completo extermínio do tempo.

A culminação da proposta aparece, em maior evidência, na faixa “BRUXARIA ANIMALESCA TA NA NÓIA”, cujo ritmado e bruxaria são fundidos. É um ponto de interseção onde a percussão tribal se choca com os ruídos urbanos e sintéticos, em um ritual que soa ancestral e alienígena. É o ponto alto da ritmofagia: a deglutição total de referências para cuspir algo novo, instável, pulsante.

Apesar da ousadia, o álbum não é de fácil digestão — e nem pretende ser. No futuro ainda somos baile: Ritmofagia não entrega conforto melódico, refrão chiclete ou sequência linear. Ele exige escuta ativa, paciência, e abertura a um tipo de construção sonora que se recusa a seguir fórmulas. É um disco que desestabiliza, que impõe um tipo de dança fragmentada, espasmódica — um convite ao corpo que ainda não aprendeu como se mover nesse novo tempo.

DJ Paranoia entrega em No futuro ainda somos baile: Ritmofagia um dos trabalhos mais radicais e instigantes do funk na atualidade. Ao cruzar os caminhos da ritmada, da bruxaria e da psicodelia sonora, ele constrói um manifesto em forma de som — um experimento antropofágico que desafia os símbolos; o espaço que o gênero tem ocupado em sua expansão global, e propõe, sobre isso, um outro modo de entender o ritmo, o corpo e o baile. É um álbum para os ouvidos aventureiros e para quem acredita que o funk é, sim, lugar de invenção, ruptura e arte.

Selo: Humildes do Som Coletivo
Formato: LP
Gênero: Funk / Beat Bruxaria, Mandelão
Eduardo Ferreira

Estudante de jornalismo, 21 anos. Atualmente, redator/colaborador do TMDQA!. No Aquele Tuim, integrante das curadorias de Funk e Rap/Hip-Hop.

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