Opinião | Por que 2020 é a década dos álbuns de funk?


Mesmo sem rádio, TV ou qualquer espaço na mídia tradicional, o gênero dominou o streaming e transformou os álbuns em seu novo território.

Desde seu surgimento – e este não é o foco aqui – o funk tem migrado de formato em formato. Nos primórdios, as compilações em LPs e CDs, como as da Furacão 2000, definiam o espaço que o gênero podia ocupar, já que as rádios e os programas de TV nunca foram sua melhor vitrine – mesmo que vertentes como o funk melody, com teor sexual reduzido, marcassem presença nos maiores programas dominicais da TV brasileira.

Ao longo dos anos, o funk mainstream foi se adaptando às inovações tecnológicas. Na década de 2010, os DVDs – em sua maioria também da Furacão 2000 – eram a febre dos camelôs no mercado pirata. Mais tarde, vieram os pen drives, comercializados da mesma forma, mas com um toque de modernidade.

Com a evolução dos formatos, o gênero também sofreu mutações. Foi nessa época dos pen drives, por volta de 2012, que surgiram os famosos 'racha de som', onde carros com paredões de caixas de som disputavam qual tinha mais potência, impulsionando a produção de um funk cada vez mais influenciado pela música eletrônica de rave, com ganchos e drops bastante formulaicos.

Quando esse tipo de produção caiu em desuso, o funk manteve sua essência de propagação popular através de carros, dando origem a novas vertentes, como o funk automotivo e o eletrofunk.

O consumo digital

Não há dúvidas de que o consumo digital foi o grande catalisador dessas mudanças. Na segunda metade da década de 2010, produtoras como KondZilla se consolidaram, estabelecendo o formato de videoclipes como um padrão do gênero. O fenômeno se tornou inegável quando hits como “Bum Bum Tam Tam”, de MC Fioti, dominaram as paradas e bateram recordes de visualizações no YouTube. A explosão do funk rasteirinha, com MC Kevinho e Mc Livinho, consolidou ainda mais essa tendência.

Hoje, com as plataformas digitais e a expansão global do funk, os álbuns finalmente se tornaram o formato predominante – em sua extensa maioria, lançados apenas no Spotify. Algo diferente do habitual, pois o gênero nunca havia aderido ao formato de LPs, nem físicos de nenhum outro tipo, em parte pelo alto custo e pela falta de espaço de divulgação do material completo na mídia tradicional. Com o passar dos anos 2000, as vertentes mais inocentes foram desaparecendo, dando lugar à 'putaria', que desde então sempre esteve presente. O último a resistir com esse funk acessível e até lançar discos foi MC Koringa, do Rio de Janeiro.

Depois, o duplo sentido de músicas como “Dako É Bom”, de Tati Quebra Barraco, deu lugar a temas mais explícitos como “ABCdário da Putaria”, dos Hawaianos, e “Tô com o cu pegando fogo”, de Valesca Popozuda e MC Catra. Foi então que o funk se afastou ainda mais do que se tinha como meios tradicionais, restando apenas os ambientes online (essencialmente o YouTube e o Instagram) como plataformas de divulgação — visto que, o estilo de vida, o ‘lifestyle’ que moldou o Funk Ostentação, também se agregou a toda essa evolução dos meios.

O acesso à internet e a democratização dos espaços

O grande estopim dessa mudança veio na década de 2020. Com o Brasil cada vez mais conectado – mesmo que algumas regiões ainda careçam de infraestrutura como acesso a energia elétrica –, o espaço para novos DJs e MCs se expandiu. A popularização de softwares de produção como FL Studio e Ableton permitiu que mais artistas pudessem criar suas próprias faixas sem intermediários.

A pandemia de COVID-19 também desempenhou um papel fundamental. O DIY (faça-você-mesmo) se tornou mais do que um estilo de criação, mas também um meio de propagação, assim como os carros de som eram no passado. Só que, dessa vez, quem dominasse melhor a produção musical, quem fizesse o som mais diferenciado, se destacava. Esse período também impulsionou novas estéticas sonoras. Foi assim que surgiram o beat bruxaria e outras experimentações que viriam a moldar uma nova vanguarda no gênero.

Foi algo natural: com mais DJs e MCs produzindo, replicando tendências, alterando ideias e se aprofundando em temáticas novas – mesmo que nem todas ganhassem o mainstream –, criou-se então espaços que comportassem esse grande volume de lançamentos. Os bailes de rua são onde esses artistas têm verdadeiro destaque, ainda que limitado a um sentido regional. Nomes como DJ Arana e DJ Blakes, por exemplo, vieram deles e alçaram os holofotes nacionais — e até mundiais — graças a essa vanguarda 'regional' que antes faziam parte.

O dedo do trap

O trap também teve um papel crucial na consolidação dos álbuns no funk e no chamado "novo pop nacional" nesta década. Desde 2016, discos de trap brasileiros já eram lançados, como Rockstar Mixtape, de Raffa Moreira, um marco em todos os sentidos possíveis. O próprio Raffa, no entanto, só adotou o formato de álbuns propriamente ditos em 2020, com BC Raff Album – colocar ‘álbum’ no título foi uma ótima sacada, pois era como se ele estivesse dizendo: “chega das mais de uma dezena de mixtapes que lancei, agora é álbum!”. Nesse mesmo ano, veio a virada: Máquina do Tempo, de Matuê. Do ponto de vista musical, foi uma revolução ímpar; do ponto de vista de formato, foi um impacto de asteroide.

Quando Máquina do Tempo foi lançado, alcançou números impressionantes, comparáveis apenas aos de artistas pop internacionais no Spotify Brasil. O impacto foi sentido em toda a indústria nacional, mostrando que os álbuns podiam ser uma estratégia viável para o crescimento dos artistas, principalmente os de funk. E, conforme as páginas de divas pop cada vez mais divulgavam os números de Matuê no Twitter, mais o álbum crescia e gerava comparações e rivalidades no cenário brasileiro como um todo, instigando uma competitividade nunca vista – ele foi, inclusive, muito odiado e é atacado até hoje por isso.

Os streams

Se o funk passou a adotar os álbuns, foi menos por uma questão artística e mais por um motivo bem pragmático: os streams. Com o TikTok e outras redes sociais impulsionando músicas virais, o streaming se tornou a principal fonte de renda dos artistas – mesmo que indiretamente. As produtoras rapidamente perceberam que, ao lançar um álbum em vez de singles isolados, aumentavam as chances de emplacar várias faixas de uma vez. Daí em diante, foi só uma questão de unir o útil ao agradável.

No entanto, esse movimento não se aplicou da mesma maneira a DJs e MCs independentes, que ainda lutam por maior consolidação e visibilidade no mercado. Para eles, os álbuns vão além de uma estratégia comercial: são uma extensão da identidade artística, um portfólio de trabalho e um registro formal de sua trajetória. Isso se reflete em obras definitivas como Sexta dos Crias, de DJ Ramon Sucesso – lançado no Bandcamp, que possibilita a compra do conteúdo, como alternativa ao streaming –, É Ele Né, ESPANTA GRINGO, Carreira Solo, Queridão (que foi divulgado pelo selo internacional Nyege Nyege Tapes) e, principalmente, PANICO NO SUBMUNDO (também do selo Nyege Nyege Tapes).

Esses álbuns são importantes porque também receberam ampla atenção dos fãs de música e da crítica, inclusive a internacional. Podem ser vistos como o “lado bom” do formato, pois souberam, sobretudo, como usá-lo.

Os álbuns

Hoje, os álbuns – incluindo EPs, singles e remixes – são o principal meio de distribuição do funk. As gravadoras e editoras, como a Authentic Records, descobriram o potencial lucrativo do formato e passaram a promovê-lo regularmente.

Essa corrida pelos streams, todavia, tem um lado negativo. Muitos álbuns acabam sendo produzidos sem grande preocupação com longevidade ou identidade artística. Diferente do pop, que trabalha com “eras” bem definidas, os discos de funk são lançados em grande volume, muitas vezes com capas geradas por inteligência artificial e conteúdo repetitivo – impacto direto, e negativo, do phonk. Essa lógica de reprodução se dá pela seguinte estratégia: ao invés de lançar 10 faixas separadas, elas são reunidas em um álbum. Se uma fizer sucesso, todas as outras se beneficiam.

No fim das contas, os artistas descobriram um verdadeiro pote de ouro nos álbuns – e o funk, enfim, abraçou o formato de vez.

Matheus José

Graduando em Letras, 24 anos. É editor sênior do Aquele Tuim, em que integra as curadorias de Funk, Jazz, Música Independente, Eletrônica e Experimental.

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